O Copo Cheio e o Vazio.

Era mais uma noite quente, dessas em que o silêncio pesa, e a brisa noturna traz consigo os sons dos bares. Os risos ecoavam pela rua, acompanhados pelo tilintar de copos que brindavam algo que ninguém sabia bem o que era.

Na mesa do canto, sentava um homem com os olhos mergulhados no fundo de um copo. João — que poderia ser Pedro, Carlos ou qualquer outro nome — era o retrato de tantas histórias. Aos 50 anos, o rosto carregava as marcas de quem já sorriu muito, mas há tempos esquecera o motivo.

O primeiro gole, anos atrás, veio em um momento de celebração. Era o casamento de um amigo. O champanhe deslizou pela garganta como um ritual, um símbolo de alegria. Depois, vieram outros goles, em outras festas, em momentos de luto, nas noites solitárias. O copo, inicialmente um coadjuvante, passou a protagonizar suas noites.

"Eu bebo porque gosto", dizia ele, quando alguém questionava. Mas lá no fundo, onde a verdade sussurra, ele sabia que o álcool não era prazer, mas anestesia. Uma tentativa vã de preencher os espaços vazios da alma, de calar as vozes que o lembravam do que não foi, do que perdeu, do que deixou para trás.

Ao redor, o bar seguia sua própria dinâmica. Havia os que riam alto, os que se embriagavam de coragem para um flerte, os que encontravam no copo uma fuga temporária. João observava todos, como um espectador da vida, enquanto sentia a própria escapar por entre os dedos.

Em casa, a história era outra. A esposa, que um dia acreditara na promessa de que ele iria mudar, já não dizia nada. Apenas o silêncio acompanhava seus passos trôpegos. Os filhos, outrora crianças que pediam histórias antes de dormir, agora o evitavam, como se o cheiro de álcool fosse um aviso de que ele não era mais o pai que conheciam.

Naquela noite, algo mudou. Não foi um grande evento, nenhuma epifania cinematográfica. Apenas um reflexo no vidro da janela do bar. Ele viu a si mesmo, um homem gasto, cansado, com um copo de um lado e um abismo do outro.

Ao se levantar, cambaleante, deixou o copo pela metade. Lá fora, o ar fresco o atingiu como uma bofetada. Caminhou sem rumo, sentindo o peso de todas as escolhas que fizera e das que ainda poderia fazer.

O alcoolismo, percebeu, não era o inimigo. Era o sintoma. O real combate seria com ele mesmo, com a coragem de enfrentar o que o copo escondia.

E assim, naquela noite que parecia como todas as outras, João começou a pensar que talvez o vazio não precisasse ser preenchido, mas compreendido. Afinal, o primeiro passo para deixar de beber era aprender a segurar a própria vida, sem precisar de um copo para isso

Pri Scot
Enviado por Pri Scot em 04/01/2025
Código do texto: T8233866
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