Os Maus Encontros da Vida

A filosofia de Espinosa e Deleuze converge na mesma direção ao afirmar que a vida é feita de bons e maus encontros. O ser humano, como ser vivente, está sujeito a ser afetado pelo mundo exterior. Esses afetos, segundo Espinosa, são chamados de paixões. Deus, para Espinosa, é o único ser que não está condicionado por ações externas e, por isso, é considerado perfeito. Já o ser humano precisa tomar cuidado com suas afecções.

 

Alguns encontros com o mundo nos alegram, elevando nossa energia e disposição perante a vida. Outros nos entristecem, diminuindo nossa potência de agir.

 

Sabe quando avistamos, de longe, aquela pessoa que amamos, e só a visão dela já aumenta nossa disposição? Para Espinosa, esse é um encontro positivo. Por outro lado, quando cruzamos com aquele amigo mala, cuja simples voz já nos exaure, experimentamos um encontro negativo, que drena nossa energia.

 

Um dos meus maus encontros aconteceu em uma loja (biqueira) que eu costumava frequentar. Por acaso, encontrei o pai de dois amigos de infância — gêmeos — e também amigo do meu pai. Eu já sabia que ele gostava de uma cachaça, mas não fazia ideia que também era chegado numa química. Ele é casado há mais de 35 anos, mas gosta de “dar uns rolês” e desaparecer sem avisar a esposa.

 

Naquele dia, ele estava completamente alterado, “pra lá de Bagdá”. Quando me viu, disse:

— Você nunca me viu aqui, e eu nunca te vi aqui.

 

Mais tarde, quando eu estava voltando, ele estava num bar contíguo, bem alegre (e claramente muito louco), e começou a falar:

— Esse aqui cresceu com meus filhos. Sou amigo do pai dele. Ele não sabe das minhas loucuras, nem eu sei das dele, mas ele é muito gente boa… Gostei de ter te encontrado aqui.

 

Aquele papo típico de bêbado, sabe? Eu, totalmente sóbrio, dei o único conselho que pude:

— Fique aqui. Só volte para casa quando estiver completamente sóbrio. Daqui a pouco, pare de beber e hidrate-se, por favor.

 

Depois disso, voltei para casa e fui fazer uso no meu quarto, sem me aproximar nem de longe do estado em que o pai dos meus amigos estava.

 

Por mais que eu nunca tenha sido visto naquele estado, reconheço um paradoxo: a química é um problema maior para mim do que para ele. Ele só “mete o louco” de vez em quando, enfia o pé na jaca ocasionalmente — o que, sem dúvida, é nocivo e nada recomendável. No meu caso, o uso havia se tornado um hábito, algo profundamente enraizado na minha rotina. Era imperceptível para muitos, mas me consumia lentamente.

 

Nas partilhas do N.A., já ouvi histórias de pessoas que passaram 15 dias acordadas, vivendo nas ruas, roubando objetos de casa. Usuários de crack, geralmente, acabam na Cracolândia. Eu nunca passei mais de uma madrugada longe de casa, e mesmo assim avisava quando ia dormir fora.

 

Ainda assim, como disse Lucrécio ao observar os hábitos dos licenciosos: “Que bom que não estou lá.” Não por querer observar o mal dos outros, mas por perceber o quão longe eu também poderia ter chegado.

 

Minha rotina, tanto usando quanto não usando, é tão imperceptível que, mesmo estando há 10 dias abstêmio, minha mãe ainda acredita que continuo usando. Isso porque passo boa parte do tempo deitado, meio embotado no meu quarto, e meu nariz ainda sangra ocasionalmente. No entanto, o que estou enfrentando agora são apenas os efeitos adversos da abstinência, que, felizmente, estão cada vez menos intensos.

 

Aos poucos, estou me sentindo mais disposto. Hoje, consegui voltar a ler algumas páginas e passo cada vez mais tempo acordado. Enquanto ainda estou deitado, aproveito para escutar aulas on-line de filosofia. E escrevo.

 

Na segunda-feira, serei reavaliado por uma médica clínica geral, amiga, que trabalha no posto onde também atuo. Ela tem sido discreta em relação ao meu caso e conhece minha situação desde o início. Foi a primeira pessoa a quem procurei para falar sobre a recaída e pedir ajuda para encontrar um lugar onde pudesse ficar enquanto me recupero.

 

Pretendo verificar com ela a possibilidade de permanecer mais alguns dias em casa; uma semana já seria suficiente para eu me sentir mais confiante ao retornar à rotina de trabalho. O problema é que depois do horário do trabalho, quando chego em casa, representa um gatilho para mim, já que era, geralmente, o momento em que costumava fazer uso. Sei que não será fácil lidar com isso, mas estou determinado a enfrentar essa fase com o máximo de preparação possível.

 

Para quem se pergunta como é a sensação de desejo causado por um gatilho, ela se assemelha a planejar comprar um celular novo após o expediente — um modelo mais avançado de iPhone, por exemplo — e passar o dia inteiro na expectativa e ansiedade, aguardando o grande momento da compra. Da mesma forma, a substância, ou até mesmo a ideia do uso, gera esse tipo de ansiedade e uma liberação de dopamina no cérebro, semelhante ao consumo. Mas talvez mais forte e intenso, pois é uma angustia física também.

 

Mas chega de maus encontros. Estou em busca apenas de bons encontros com o mundo, aqueles que favoreçam minha fisiologia, minha saúde e minha maneira de ser.

 

É de Deleuze, no livro Mil Platôs, a frase de que “a literatura é uma saúde”. Pretendo exercitá-la ao máximo, seja lendo ou escrevendo.

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 03/01/2025
Reeditado em 03/01/2025
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