Natal na Velha Casa
Guilherme, originalmente Wilhelm, fora batizado com este nome em homenagem a um famoso imperador alemão de outras eras. Quando, ainda pequeno, viera com seus pais para o Brasil, circunstâncias locais aconselharam a adaptação do seu nome. Entre as poucas lembranças que guardava da Alemanha, estavam as festas natalinas e a neve.
Sentado em sua cadeira de balanço, sozinho, contemplava a paisagem do vale ensolarado. A seus pés o cão, em seu colo o gato, ronronando agradecido pelos carinhos que os dedos magros e cheios de nódoas lhe faziam. Era sua rotina. Visitas eram raríssimas. Seus filhos, netos e bisneto, que moravam longe, um vizinho tão solitário quanto ele e a Sra. Schmidt, enfermeira de bom coração, que uma vez por mês vinha perguntar pela sua saúde e lhe trazia metade de um pão caseiro fresquinho.
Assim, ensimesmado, admirava ao longe as nuvens ainda douradas, os picos dos morros distantes já haviam mergulhado em sombras. Lá fora, principiava o canto das cigarras, anunciando dezembro. O perfume dos arbustos em flor penetrava naquele ambiente com cheiro de casa antiga.
Alguém bate à porta. Antes de levantar-se, ela se abre e ele vê diante de si sua neta mais velha, Rachel. A surpresa repentina lhe rouba as palavras e já se sente envolvido por um doce e caloroso abraço, que perdura minutos. Mentalmente ele procura lembrar quando a vira pela última vez. Aquela garotinha era agora uma mulher, linda, charmosa, simpática. Ele quer balbuciar alguma palavra, mas Rachel lhe coloca o indicador na boca, pedindo silêncio, e senta-se ao seu lado.
- Neste ano a ceia de Natal será em sua casa. À moda antiga...
- Mas...
Guilherme não conseguiu continuar, pois novamente o indicador de Rachel lhe pede silêncio.
- Formei-me em História, consegui emprego aqui perto, meus pais vêm morar por aqui também, e já falei com meus tios e primos. Está tudo combinado e decidido. Estudei sobre o Natal, anotei, com meus pais e tios todos os costumes e resgatei em minhas lembranças cada detalhe para revivermos o seu Natal, o nosso Natal de infância, e ...
O velho não ouviu mais nada. Seus pensamentos, num segundo, retrocederam décadas e o colocaram na cozinha da casa paterna, junto à sua mãe, ainda menininho. Penetraram-lhe pelas narinas os aromas dos doces de Natal, da canela, do cravo, das raspas de limão, das especiarias, da baunilha, do conhaque, das passas. Viu a enorme e rústica bacia marrom de cerâmica esmaltada, em que os ingredientes eram misturados. Sentiu seus dedinhos lambiscando os restos da massa crua que lá ficara; até mesmo o granulado do açúcar era perceptível aos dedos e se ouviu pedindo à mãe que também lhe permitisse lamber a colher de pau.
Depois, viu as hábeis mãos maternas destacando, com uma faca, os biscoitos que saíam da boca da máquina de moer carne, enquanto ele, com ar de importância, auxiliava, girando a manivela. Estava ciente da importância de sua ajuda. A vida lhe mostraria que, naqueles tempos, sua ajuda era mais estorvo que auxílio, mas crianças são seres maravilhosos e mães são mesmo santas de carne e osso. Viu-se observando a mãe tirando as enormes formas retangulares do forno à lenha, cortando os doces de mel em tamanho milimetricamente exato, cada um encimado com um pedaço de castanha-do-pará ou uma avelã. Admirou também a habilidade de sua mãe ao cortar, em minúsculos pedacinhos, as frutas cristalizadas que, com mil outros componentes e ingredientes, resultariam no famoso Stollen, espécie de bolo compacto e saboroso, símbolo da culinária natalina alemã.
Viajou em pensamento para o primeiro domingo de advento, em que sua família, reunida, sentava-se na sala. Sua mãe fizera a tradicional coroa de advento, com ramos de pinheiro de verdade, fita vermelha, pinhas secas naturais, bolas coloridas de vidro e cabelo-de-anjo prateado, tendo em cada um dos quatro cantos uma vela. Enquanto o enfeite, afixado por finas cordas ao teto, girava de leve, acendia-se a primeira vela, anunciando ser aquele o quarto domingo anterior ao advento do Natal. A família cantava uma canção natalina, saboreava-se chocolate, guloseimas e nozes. Relembravam-se ocasiões especiais e teciam-se planos para as férias próximas. O ritual repetiu-se nos três domingos seguintes, cada vez uma vela a mais era acesa, criando-se um clima de aproximação e expectativa da maior festa da Cristandade. O seu irmão e ele faziam a lista dos presentes que desejavam pelo Natal.
Guilherme viu-se também, na tarde da véspera, caminhando com sua avó e seu irmão pelos bosques próximos, para oportunizar ao Papai Noel enfeitar o pinheirinho e trazer os presentes e brinquedos. Era o piquenique de Natal, elevando ao máximo a ansiedade pela chegada da noite.
O velho enxergou-se, criancinha, aguardando que Papai Noel tocasse a sineta, autorizando a família a adentrar à sala. Lá estava o pinheiro de verdade, com velas de verdade. Ouviu a família, seu pai com voz forte e destacada, sua mãe com tom doce e delicado, cantando, em alemão, a “Noite Feliz”. Depois, o Tannenbaum, (pinheiro de Natal). Esta última canção natalina falava do exemplo de persistência que os homens poderiam tirar do pinheiro. Segundo a letra, ele não verdejava somente no verão, mas também no mais rigoroso inverno, como a encher os homens de consolo nas agruras e com força de vontade em todas as vicissitudes da vida. Seus olhos, no entanto, como os do irmão, estavam fixos nos presentes, o canto era algo mecânico.
A última nota ecoou, a sala, iluminada somente pelas velas do pinheiro, experimenta alguns segundos de absoluto silêncio. Todos, um a um, cumprimentam-se, abraçam-se, desejando-se mutuamente o “Frölicher Weihnachten”, o Feliz Natal. As crianças ansiosas pelos presentes, os mais velhos com lágrimas nos olhos, se abraçando. Guilherme na época não entendia como em momentos tão especiais alguém poderia chorar. Mais tarde chorou muitas vezes, e compreendeu que as lágrimas eram um pouquinho pela dor da infância morta e que os adultos costumam lembrar coisas tristes em ocasiões alegres.
O Natal que revivia era o em que tinham recebido patinetes. Chovia, e papai, Papai Noel, deixou que brincassem dentro de casa. Foi quando voltou a si e viu Rachel sorrindo. A neta lhe repetiu todos os planos.
Na tarde da véspera Guilherme trilhou o mesmo caminha de outras épocas, sozinho, a bengala por companhia. Como tudo mudara! Enfim, ele também mudara.
A noite foi maravilhosa. A família decorara e cantara as músicas natalinas em alemão, o Stollen ficou maravilhoso, as crianças em polvorosa com seus brinquedos, os adultos derramando as lágrimas cuja origem Guilherme já nem conseguia identificar. O entusiasmo em ver a velha casa rememorando antigos natais tocou-o profundamente.
Era madrugada, os ocupantes da casa dormiam. Guilherme arrastou silenciosamente sua cadeira de balanço para diante do pinheiro. Recordações em profusão o assaltaram. Era incrível como lembrava a voz de sua mãe, de seu pai, de sua avó, até da empregada. Murmurando baixinho as canções de natal, as luzes se apagaram.
Quando Rachel acordou, na manhã seguinte, encontrou-o na cadeira de balanço, com um sorriso divino nos lábios. Tinha adormecido.