De cristão renegado a Filho do Rei – Estratégias de aquilombamento espiritual

Dona Tonha, Dona Odete, Mãe Odete, Tia Odete, ou, para mim, simplesmente,

vovó. Todos esses títulos e apelidos refletem os vários papéis que Dona Odete

Ferreira dos Santos assumia nas nossas vidas, a ponto de se atravessarem

durante a rotina de afazeres domésticos, espirituais, econômicos e familiares.

Desde pequenos, nós (eu e dois irmãos) ficávamos na casa de vovó enquanto

nossos pais saiam para trabalhar. Lugar de encontro entre primos, tios, filhos de

santo e agregados, aos poucos, passei a me interessar pelos “couros” o que fez

nascer em mim o sentimento de pertença e acolhimento familiar.

Caldinho de feijão logo cedo, às quatro horas da manhã. Lavar, catar e passar

feijão. Bater massa, arrumar o tabuleiro. Inveja das mulheres que podiam carregar

o tabuleiro na cabeça, pra nós, homens (no meu caso, menino) sobravam “as

coisas sem importância”, carregar os bancos, o cavalete, o tacho, tudo bem

arrumado no carrinho de mão.

Quando nossos pais se tornaram Testemunhas de Jeová, um hiato se formou entre

nós e o restante da família, deixamos de ficar aos cuidados da minha avó, para

ficarmos na casa de uma amiga da minha mãe, também TJ. Passamos a ouvir

coisas horríveis sobre os candomblecistas, como sendo adoradores do Diabo,

bebedores de sangue humano, pactários com forças malignas, entre outras

mentiras perversas do racismo religioso institucionalizado. Pra mim era

inconcebível que aquela velha tão amada por todos, tão entregue à caridade e ao

afeto, maior referência em minha vida, seria destruída no Armagedom. Se ela

fosse, eu queria ir também. Daí, me revoltei contra Jeová, não tinha como o amar.

Então, tentei o suicídio.

Pra quem vem de religião de matriz africana o racismo bate mais cedo na porta, na

cara, nas costas, na mente. Cria cicatrizes que nunca serão apagadas, pois

passam a fazer parte do indivíduo e, de uma forma, ou outra, em algum momento

da sua vida, rasgam o corpo negro ao meio. No meu caso, ela, a cicatriz, emergiu

em forma de depressão, auto ódio e pensamentos suicidas. Certa vez, sofri

queimaduras no couro cabeludo ao tentar alisar o cabelo com um ferro de passar

roupas. Haviam roubado a minha identidade, mas não acharam outra compatível

para substituí-la.

Entender as tecnologias de manutenção das estruturas racistas é um passo

fundamental para o enfrentamento eficaz ao racismo. Porém, antes disso, se faz necessário, muitas vezes, reconstruir os corpos e mentes dilacerados por essas

estruturas. Nesta perspectiva, o candomblé entra, mais uma vez, em minha vida.

Só quem realmente conhece um roncó sabe o poder regenerativo que este espaço

carrega. “Morre um, pra outro nascer.” Robenilson morreu ali, naquele roncó e, em

seu lugar, nasceu Di’Oyó. Minha postura mudou, o queixo se elevou, as pessoas

me diziam que eu fiquei arrogante e, confesso, talvez fosse verdade. Eu deixava de

ser um rejeitado do mundo “cristão” pra ser o filho do Rei Orgulhoso guia do meu

ori. Então descobri que sempre fui “a menina dos olhos de Xangô”. E, ainda

escrevendo este texto, vejo, com os olhos que nem todos podem ver, a minha

“Preta Véia” sorrir, com aquele sorriso de canto, a me dizer: “Xangô te abençoe,

meu fio! O Rei está vivo! Kabiecilê!” Isso me impulsiona a reafirmar o

compromisso de lutar para desconstruir a imagem demonizada que propagam dos

nossos antepassados. De dizer para o mundo “MINHA PRETA VELHA NÃO É DO

DEMÔNIO! NOSSOS PRETOS VELHOS NÃO CONHECEM O DIABO DE VOCÊS!”

Esta é a minha missão.

Mó juba, Preta Véia! Axé ô!