Herança africana e a redação do Enem que escreveria em 1ª pessoa, sob pena de zerá-la
Refleti, nos últimos dias, sobre o necessário tema da redação do Enem: "Desafios para a valorização da herança africana no Brasil". Pensei em quais abordagens eu poderia discorrer no texto dissertativo-argumentativo, aquele objetivo e impessoal exigido na prova pelos catedráticos da nossa língua. Os subtemas são inúmeros. As possíveis intervenções e soluções fazem parte da nossa realidade. Se eu não levasse em conta tantas variáveis (nervosismo, tempo, barulho do ventilador), talvez, até me saísse bem.
Por outro lado, num contexto em que não preciso mais me submeter ao Enem, arriscaria escrever a redação, proposta agora em 2024, em primeira pessoa do singular (eu), algo desaconselhável. Afinal de contas, aprendemos, como se fosse um mantra, que o texto do exame precisa estar em terceira pessoa do singular ou plural (ele, eles) ou primeira pessoa do plural (nós). Isso afasta subjetividades e até facilita a compreensão de quem lê.
Mas por que eu arriscaria tirar zero na redação, ao me colocar como sujeito no texto? Nesse caso, creio que o conteúdo que tenho para relatar sobre a minha (falta de) africanidade tenha mais relevância do que a forma. Repito! Submeter-me-ia à prova apenas para ser “treineiro”, sem concorrer diretamente a uma vaga em universidades.
E o que eu tenho para relatar de tão importante assim? Para a maioria de quem lê este texto, talvez seja irrelevante, mas, para mim e algumas pessoas com histórias semelhantes, traduzir um desabafo em palavras escritas, sobre observações a respeito da nossa “herança”, pode ajudar a desatar um nó na garganta que se comprime sempre que, numa rodinha de amigos, todos narram, com riqueza de detalhes, feitos dos avós, bisavós, tataravós e demais antepassados alemães, poloneses, italianos, japoneses, enfim, enquanto me silencio por desconhecer meu passado.
Não! Nenhum desses amigos têm culpa por terem histórias para contar. Eu apenas tive o infortúnio de nascer num país em que, a depender do grau de melanina, muitas gerações têm direitos suprimidos, inclusive o de não ter acesso à própria herança. Não me refiro à monetária, todavia à imaterial, da minha genealogia. Quem foi Maria Raimunda Santos, minha bisavó, a qual nem sei com que idade faleceu?
Inclusive, a Maria Raimunda, com tantos filhos, netos e bisnetos, chegou a se casar? Alguns desses descendentes nasceram de um amor verdadeiro ou vieram ao mundo como consequência de estupros? São muitas perguntas, e as respostas estão apenas num sobrenome, o “SANTOS”, o único que eu e meus familiares, até a geração da minha mãe, pelo que tenho conhecimento, carregamos nas nossas certidões de nascimento.
Intimamente, queria estar mais ligado às minhas origens, algo além de ter uma vaga lembrança dos alvos cabelos crespos de Maria Raimunda, um contraste com a retinta pele preta dela. Queria poder dizer, nas rodinhas dos amigos, que meu bisavô ajudou a construir uma obra emblemática na minha cidade. Queria ter ciência de que algum antepassado lutou contra o tráfico negreiro em algum porto clandestino banhado pelas baías de São Marcos e do Arraial, na Ilha de Upaon-Açu. Acontece que tantos desejos continuarão apenas desejos, pois nem meu pai biológico eu conheço.
Nessa árvore genealógica desfolhada, o que resta é a história de um povo contada por quem não demonstrou o mínimo interesse em mantê-la fidedigna às heranças iniciadas no outro lado do Atlântico. E, sinceramente, acho que as soluções óbvias que eu exporia na redação do Enem, se quisesse tirar uma boa nota, não são suficientes, até porque nenhuma delas pressuporiam uma máquina do tempo para me fazer conhecer quem veio antes de Maria Raimunda Santos.