Quem somos nós, Bartolomeu?
"Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser completamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.” (Ítalo Calvino)"
Dias atrás fui surpreendido por ligação telefônica de um amigo, Bartolomeu, que não via há muito. Colega da faculdade, trabalhamos na mesma empresa por alguns anos. Foi transferido para unidade nos Estados Unidos. Em dada reunião internacional conversamos. Disse que não mais pretendia voltar a morar por aqui. Aposentado, voltou agora para visitar a filha, médica, que havia permanecido no Brasil. Me encontrou por mídia social. Combinamos um almoço em restaurante.
Me peguei tentando adivinhar como ele estaria. Não só fisicamente. Seria a mesma pessoa alegre, que não perdia a oportunidade de inventar ou contar uma anedota circunstancial, relacionando determinado momento ou situação a um comentário hilário? Nos tempos de hoje seria um ótimo comediante de stand up. Até onde havia chegado profissionalmente? O que estaria fazendo? Consultoria, serviços domésticos? Como nos apresentaríamos? Seríamos formais?
O primeiro momento do encontro revelou-se muito simples. Nos abraçamos e já não medíamos as palavras. Você engordou! Você ficou careca! E esta bengala? Artrose. E você manca por quê? Meti o joelho na quina de uma caixa de concreto. Tinha bebido? Churrasco com familiares e passamos um pouco da conta.
Almoçamos longamente. Esposas aposentadas. Estão bem. Filhos seguem seus próprios caminhos. Bem-sucedidos. Saúde, sob controle. Carreiras? Ambos satisfeitos com os desempenhos. Vida de aposentado? Ele, uma ou outra consultoria em Gestão da Qualidade, sua especialidade, jardineiro, pedreiro, motorista da mulher, chargista e pintura de quadros. Sem fins comerciais. Eu, faxineiro, pedreiro, jardineiro, carpinteiro, jogador de boliche, entre uma viagem e outra. E escritor, com o objetivo de lançar ao menos um livro. Sem grandes ambições. Apenas o prazer de folhear meus escritos e ter ao menos uma pessoa, que diga que leu até o fim e gostou.
Ficou patente que tínhamos cabedais de experiências dessemelhantes. Situações e dificuldades enfrentadas desiguais. Ambientes profissionais, culturais, estilos de vida bem diversos. Quando por aqui convivíamos, costumávamos estabelecer diálogos opinativos, enriquecedores, sobre vários assuntos, profissionais, sociedade, cultura, cinema, teatro, esportes, filhos e até religião. O tema político era recorrente. Vivíamos o período militar. Ambos tínhamos os recursos financeiros muito limitados. Dedicávamo-nos apenas aos estudos. A política vigente não poderia interferir.
Um pouco frustrante foi perceber que, mesmo com a total liberdade de diálogo, como nos velhos tempos, podíamos apenas narrar o que tinha sido nossas vidas até então. Agradável encontro? Sim, muito. Mas, ficou faltando aquela proximidade, amizade do passado. Parece que nossas respectivas experiências de vida acumuladas impedia a cumplicidade que desfrutávamos em nossa convivência pregressa. Sem constrangimentos, comentamos sobre isto. Como nos tornamos o que somos? Resultado do conjunto de experiências que escolhemos e as que a vida nos impõe?
Ao final do encontro, Bartolomeu lançou um desafio. Eu, como escritor, deveria escrever sobre quantos tipos de experiências existem e que moldam nossos futuros. Recebendo minhas ponderações ele criaria pinturas ou charges relacionadas. Topei.
Após pesquisa e reflexões, listei os seguintes tipos: concretas, filosóficas, por processos organizados, em carreiras profissionais e as que a vida nos impõe.
Representam bem as concretas as tais experiências científicas, de laboratório. Executa-se um procedimento e obtém-se um resultado, palpável, real.
Imputado a Einstein a interessante menção de que “a execução de um certo número de experiências, por maior que seja a quantidade delas, não são capazes de provar que minhas teorias são completamente corretas. Mas seria suficiente apenas uma para provar que me enganei”. Denota a experiência de quem trabalhou muito, frustrou-se, retomou, até emitir sua Teoria da Relatividade e outros relevantes trabalhos. Vale lembrar que Einstein construiu suas teorias, sem fazer observações práticas do Universo. Não usou telescópios. Banhou-se de experiências introspectivas.
Outro conceito de experiência, o filosófico: trata de conhecimento que nos é transmitido pelos sentidos.
Minha primogênita, quando pequena, em meu colo, entramos em uma toalete para lavar as mãos. Ao lado do espelho havia um soquete sem lâmpada. Ela enfiou o dedinho lá. Teve uma experiência inesquecível pelo tato.
A primeira vez que ouvi os Beatles, tinha doze anos. A emissora de rádio da pequena cidade onde morava tinha um alto falante na praça central e passou a tocar suas músicas quase que ininterruptamente. Aquela primeira vez, foi uma experiência agradável, forte e indelével. Daí em diante, quando ouço suas músicas, aquelas primeiras sensações me envolvem, cativantes. E tal experiência auditiva baliza sobremaneira minha maneira de apreciar outras músicas. As clássicas, tive contato com elas mais tarde. Demorei para apreciá-las de verdade, quando já adulto. E tenho a impressão, quando as ouço, que não é apenas o sentido da audição que prevalece. O sentido da visão também está. “Vejo” danças, bailarinas. Experiências emocionais em apresentações de balé clássico com a participação de minha segunda filha, bailarina profissional por um bom tempo, trouxe esta sensação visual adicional.
As experiências obtidas pelo olfato e paladar são muito importantes para nosso deleite, para a sobrevivência. Sentir cheiros ou gostos prejudiciais salvam vidas. Atuam juntos. Se perder o olfato, não terá paladar.
As experiências que adquirimos por processos organizados, como os educativos, recebem certificados que comprovam nossa formação. Traçam nosso futuro profissional, os campos em iremos nos especializar.
As experiências que são adquiridas na carreira profissional, na grande maioria, são definidas pelas organizações para a qual trabalha. Você recebe papéis a serem cumpridos. As experiências que adquire são ditadas pelos interesses de seus patrões. Este ambiente profissional, creio ser onde mais se alcançam realizações, mas, também, onde mais se cometem erros e onde mais se adquirem falhanços.
Experiências educativas e profissionais organizadas, desenvolvem, mais prontamente, faculdades mentais, tais como memória, percepção, conjecturas, criatividade, imaginação, associação, raciocínio, juízo, pensamento, linguagem, visão e, alguns dizem premonição. Um parêntesis para premonição. O psiquiatra Flavio Gikovate lamentou, certa ocasião, que a ciência tenha deixado de lado o estudo da premonição nos anos cinquenta. Preconizou que nossas experiências de vida seriam muito enriquecidas se o estudo científico deste tema tivesse sido retomado lá atrás.
Obviamente, existem outras atividades, legais e ilegais, onde o indivíduo desenvolve e acumula experiências. É inevitável! Seja qual for o caminho que seguir, você acumulará experiências que pautarão sua vida e que serão úteis ou prejudiciais a você próprio e à sociedade. São as experiências que a vida nos impõe.
Não espere que muitos se interessem por suas experiências. A individualidade busca e absorve aquelas que tem valor para suas próprias experiências. Vincent Van Gogh não teve, em vida, o menor reconhecimento da importância de suas experiências pictóricas. Quantos vão se interessar se você desenvolver um processo para fazer a jabuticabeira dar frutos mais cedo? Conheci um que se interessaria. Meu pai. Plantou a muda e só viu frutos cerca de vinte anos depois.
É interessante sempre lembrar que quanto mais experientes, mais amadurecidos, mais concentração precisamos para realizar nossos tarefas. Quando aprendemos a dirigir um automóvel mal damos conta de todos os itens que devemos controlar. Com o passar dos anos fazemos tudo automaticamente e agregamos outras ações: fumar, comer, beber, conversar, falar ao telefone, digitar. E acontecem os acidentes. Assisti, certa ocasião, na TV, entrevista com um senhor americano, com seus quase oitenta anos. Infelizmente, não resgatei o nome desta pessoa. Nasceu no meio circense, atuou em várias atividades do circo, mas fez sucesso como palhaço. Depois de muitos anos se apresentando de cara pintada, começou a se cansar de passar tanto tempo frente ao espelho, se maquiando. Aos poucos foi reduzindo a pintura até eliminá-la totalmente. Mesmo assim, as plateias imediatamente entendiam que ele era o palhaço. Eram fundamentais para sua performance, os experientes trejeitos, os movimentos da boca ao falar, o tom da voz. Isto é que realmente dava a ele a identidade de um palhaço de circo.
Em que idade se chega ao amadurecimento?
As experiências, acompanhadas de tempo, trazem o amadurecimento, mas, não necessariamente, precisam do tempo de uma vida. Os jovens mostram amadurecimento quando conseguem controlar suas ambições, suas ansiedades e usufruem a juventude. Os idosos, quando conseguem controlar suas frustações, fracassos, não lamentar seus erros e passam a usufruir, prazerosamente, a vida que lhes restam.
Enviado o texto ao Bartolomeu, recebi apenas uma charge, até agora. Mostrava Einstein, no colo, do pai, cabeleira eriçada, língua de fora, um dedo no soquete elétrico, gritando E=MC2.