SOCIEDADE À BEIRA DO ABISMO: REFLEXÕES SOBRE MUROS E ILUSÕES

Moacir José Sales Medrado[1]

 

Enquanto as ruas pulsam com a ansiedade cotidiana, os ricos recuam para trás de muros cada vez mais altos, com seguranças e câmeras que observam em silêncio. Nos condomínios blindados, encontram um refúgio contra a própria sociedade que, de certa forma, ajudaram a moldar. Cercados por um luxo quase intocável, afastam-se das realidades diárias que, para muitos, se tornaram quase insuportáveis. Ao lado de seus muros, existe uma classe média cada vez mais comprimida entre o conforto e o desespero, semi-pobre, sustentando o peso de manter um status que não para de escapar pelas mãos. Mais abaixo, os pobres e miseráveis formam a base dessa pirâmide invertida, onde a sobrevivência virou rotina.

 

Nesse cenário, o Judiciário e a classe política, que deveriam atuar como pilares de justiça e igualdade, parecem cada vez mais comprometidos com a defesa de privilégios. Em vez de trabalhar para reduzir os abismos sociais, muitos desses representantes blindam-se em uma bolha de benefícios próprios, deixando à margem a população que deveria ser o verdadeiro foco de sua atuação.

 

A falta de educação crítica entre a população marginalizada é outro ponto que contribui para essa dinâmica perversa. Como nos revela Jessé Souza, os desprivilegiados – brancos, negros, mestiços – tornam-se alvos fáceis para discursos que prometem reconhecimento e dignidade, mas que, na prática, apenas perpetuam sua condição de subalternidade. É a educação que, ao ser negada, deixa essa população sem o senso crítico necessário para questionar as promessas vazias e para enxergar os interesses obscuros que se escondem por trás dos discursos. Assim, a vulnerabilidade dos marginalizados é mantida e até manipulada, fortalecendo uma estrutura social que, paradoxalmente, explora aqueles que diz proteger.

 

A isso se soma a cultura do consumo e do status. Mesmo os marginalizados, vivendo em situação de precariedade, são levados a desejar símbolos que não podem ter. O marketing e o apelo do status transformam o consumo em uma meta inalcançável para muitos, gerando frustração e uma violência social sutil que fermenta em cada esquina. E como se isso não bastasse, surge uma nova indústria do ilusório: os coachs, os influenciadores e as apostas (bets), que vendem promessas de sucesso instantâneo, de fortuna ao alcance de um clique ou de uma mentalidade “vencedora”. Para aqueles que lutam em meio a um sistema desleal, essa venda de ilusões é um veneno disfarçado de oportunidade. São atalhos que desviam as pessoas das questões reais, manipulando-as para que se distraiam na busca por um “êxito” que não existe. Em vez de serem alertados sobre os desafios concretos, são induzidos a acreditar que o sucesso está a um passo – e, assim, perpetuam um ciclo de expectativas falsas e desilusões contínuas.

 

O poder de uma minoria é também sustentado pela crença na meritocracia, que se torna a desculpa perfeita para justificar o sucesso de poucos e o fracasso de muitos. Essa ideia distorcida sugere que todos têm as mesmas oportunidades, ignorando as barreiras sociais que impedem a maioria de prosperar.

 

Em meio a essa desordem, surgem as soluções fáceis e falaciosas: armar a população, impor penas de morte e prisões perpétuas, ou privatizar os presídios como respostas definitivas para o problema da criminalidade. No entanto, essas ideias apenas alimentam o ciclo de violência e controle, sem jamais enfrentar as causas reais da crise social. Armar a população cria uma falsa sensação de segurança e perpetua a lógica do confronto. A privatização dos presídios transforma a prisão em negócio, fazendo do encarceramento uma fonte de lucro e afastando ainda mais a chance de reabilitação. Essas “soluções” servem mais como cortinas de fumaça para encobrir a falta de compromisso dos que detêm o poder.

 

A desigualdade também desgasta o senso de confiança social, minando a coesão entre as pessoas e enfraquecendo o tecido que une a sociedade. A convivência passa a ser marcada pela desconfiança mútua, dificultando a formação de uma consciência coletiva que olhe para o bem comum. Em uma sociedade onde muitos sonham em ter, mas poucos podem, o crime, ainda que brutal, surge como um reflexo do próprio sistema, uma alternativa amarga para aqueles sem caminhos visíveis.

 

E, enquanto a segurança dos poderosos é garantida, os demais cidadãos permanecem expostos. O Judiciário, que deveria ser a última linha de defesa da população, muitas vezes se revela seletivo. Leis e sentenças servem aos interesses de quem pode pagar pela justiça que lhe convém, enquanto as brechas jurídicas acomodam os privilégios de quem ocupa os andares mais altos do poder. A política, por sua vez, torna-se um teatro onde muitos atuam não para mudar realidades, mas para perpetuar benefícios próprios, enquanto a população, aprisionada pela falta de educação e oportunidade, permanece suscetível às ilusões de reconhecimento.

 

No entanto, existe um último ponto, mais incômodo e sombrio: a aceitação passiva dessa realidade como algo natural e inevitável. Com frequência, quem está – ou acredita estar – protegido sente-se aliviado ao observar que, no mundo todo, a situação segue para o mesmo caminho de desigualdade e violência. Como se esse destino fosse compartilhado, e, portanto, justificável. Mas não somos animais indo para o matadouro; somos seres humanos, dotados de senso crítico. Contentar-se em socializar essa tragédia é aceitar o abate, é render-se à falácia de que não há escolha. Se somos capazes de enxergar o erro, devemos ser igualmente capazes de reagir.

 

E, talvez, essa seja a última esperança: reconhecer que ainda podemos resistir juntos, reverter a apatia e recuperar o senso de humanidade. Pois, mesmo em meio às divisões, há sempre a possibilidade de união e de solidariedade para reconstruir o que foi quebrado. Sem essa ação coletiva, o ciclo se mantém; com ela, talvez possamos abrir espaço para uma sociedade mais justa e mais crítica.

 

Até quando será possível viver cercado de desconfiança, isolado de um mundo que grita por justiça? Até quando uma sociedade partida poderá evitar o desfecho previsível e doloroso que se avizinha? O medo que antes os ricos tentavam afastar parece se infiltrar como fumaça pelos muros altos. Afinal, uma sociedade dividida é uma sociedade fraturada, e feridas ignoradas sempre acabam por supurar.

 


[1]  Engenheiro Agrônomo (UFCE), Especialista em Planejamento Agrícola (SUDAM / SEPLAN – Ministério da Agricultura, Doutor em Agronomia (ESALQ/USP)