Um abraço ao caminhão do lixo
Pela primeira vez, senti menos curiosidade que necessidade de conhecer o lixão. A princípio, eu pensava que os caminhões descarregavam todos aqueles resíduos numa cidade inabitável para humanos; onde apenas ratos, baratas e microrganismos de toda espécie se abasteciam. Depois imaginei que existisse o aterro sanitário, um local destinado à decomposição final de tudo o que é imprestável. Isto antes de conhecer o Manel que passou a frequentar o meu terreiro nos dias de colocar o lixo para fora.
- Corre! Lá vem o carro do lixo! Hoje é sexta-feira! - Desesperou-se mamãe, pensando na decomposição das vísceras do peixe da semana anterior.
Depressa, peguei a sacola preta e dobrei os passos. Além do descarte, precisava cumprir a ação solidária da igreja com a entrega das cestas básicas, retribuir amor ao próximo neste tempo quaresmal. Manel, certamente, me ajudaria a entregá-las, inclusive ele seria um dos beneficiados:
- Por que não leva para as famílias que trabalham no lixão?
Famílias que trabalham no lixão? Como eu não pensei nisto antes? O lixão agora, no movimento de minha abstração, era um ambiente organizado por uma grande cooperativa, a qual contribuía com a separação do lixo – que deveria ocorrer nas residências – reciclagem dos materiais e preservação ambiental. Provavelmente, a empresa pagava mal aos seus funcionários.
- Boa, Manel! Farei isto. Obrigada.
Horas depois, coloquei as cestas no meu carro e segui alguns quilômetros de casa até lá. Percebi que havia chegado, quando um bando de urubus alçou voo e o mau cheiro dissipou-se no ar. Havia um caminho por onde o caminhão descartava tudo, formando grandes paredões de materiais misturados: papel, lata, plástico, vidro, tecido, orgânicos... Meu Deus! Como pode ser tão diferente de todas as minhas projeções? Segui perplexa rumo a um grupo de pessoas que comia no local. Não, não era a cena da poesia de Manuel Bandeira! Alguns usavam botas, luvas, roupas, a meu ver, adequadas para o manuseio daqueles rejeitos, outros simplesmente ignoravam a segurança do trabalho. O conjunto humano recolhia da insalubridade seu sustento familiar. Manel estava errado: o exercício solidário de nossas limitações sociais e humanas carecia de uma intervenção maior.
"Para não dizer que não falei das flores", fiz a minha hora, distribuindo as cestas para cada família. Ao primeiro gesto, amontoaram-se perto do carro; pedi que formassem uma fila; à medida que entregava, uma duplicidade de braços por vez retirava-se pesada e satisfeita. Finalizado o trabalho, despedimo-nos. Liguei o carro e saí.
A impotência diante do cenário provocou-me a sensação de um dever não cumprido. Diminuí a velocidade para vinte quilômetros, dez, o carro estancou. Desci desoladamente, até perceber um menino correndo ao longe, em meio ao monturo, de braços abertos, aproximando-se cada vez mais da minha direção. Ele vinha feliz, as linhas faciais revelavam grande surpresa. A emoção do menino envolveu-me numa satisfação tal que o coração palpitou e os movimentos dos meus braços corresponderam aos dele. Porém, o abraço do menino passou distante do meu, seguindo ao encontro do novo lixo que acabava de chegar num caminhão que nem era de brinquedo.