Escravo, não: ser humano escravizado

 

 

“Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados”, altiva e conscientemente dizia a educadora Makota Valdina, professora negra da Bahia cujo nome de batismo era Valdina de Oliveira Pinto. Veja que grande e interessante lição. Seja qual for o assunto, seja qual for a ocasião, faz diferença empregar as palavras certas e ter a compreensão da carga semântica de cada uma delas. Makota Valdina se expressa de forma simples, mas irretorquível, com acuidade de raciocínio. Nenhum ser humano em si mesmo é escravo. A dignidade do ser humano é ínsita ao seu existir, independentemente de sua cor, etnia ou nacionalidade.

 

Façamos coro com a lição de Makota Valdina, a qual diverge da lição do livro didático em que estudamos e a corrige. Não, o Brasil não teve escravos: teve milhões de seres humanos escravizados! Se não mudou, é preciso mudar a nomenclatura. A escravidão existiu, não porque milhões de seres humanos eram na essência escravos, mas porque foram escravizados. Já ensinava o filósofo francês Jean Léon Jaurès, citado no livro Como tratar as mulheres, de William Camus: “Quando os homens não podem mudar as coisas, mudam as palavras.”

 

A escravidão no Brasil foi praticada cruelmente contra os indígenas e os negros. Será sempre nossa maior vergonha, uma ferida enorme que não cicatriza. Por quê? Porque nada justifica nem mesmo explica tamanha iniquidade. Foram mais de trezentos anos de escravidão, com cerca de quatro milhões de seres humanos escravizados. Um suplício que nunca acabou, pois daí vieram todas as formas de preconceito racial e discriminação, os quais devem ser combatidos a todo custo.

 

Mudar as palavras tem, muitas vezes, o poder de mudar as coisas. E, como em relação a tudo na vida, no combate ao preconceito e à discriminação, a palavra certa faz diferença. Além disso, é preciso reconhecer que a discriminação e os preconceitos existem, pois, por mais que seja absurdo, ainda existe quem diga que no Brasil não existe racismo e tudo isso é mi-mi-mi. “Ela tem o cabelo bom”, por exemplo, é uma frase racista que muitos proferem sem perceber que estão sendo racistas. “Ele é descendente de escravos” é outra. E assim por diante. Ninguém, pois, se engane nem tente negar a realidade. Aliás, por julgar oportuno recomendar, recomendo a leitura do livro Viva (e entenda) a diferença, de Marcos Brogna.

 

Além de tudo isso, é bom lembrar aqui que “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” é uma determinação da Constituição Federal de 1988 (artigo 3.º, inciso IV), como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Contudo, embora objetivo fundamental do Estado Brasileiro, não será alcançado sem que antes se reconheça sem sofisma que a sociedade dominante é racista, preconceituosa e discriminadora. Dissimuladamente, às vezes. Bem dissimuladamente.