Sem voz
De repente o silêncio veio. Não um silêncio opcional, mas sim compulsório. O máximo de repouso vocálico - e físico - possível. 10 dias de antibiótico para tratar a infecção na garganta e alguns dias afastado do trabalho para cuidar do restante. Nada grave - outrora a dor -, mas dessas paradas, que súbitas, podem até quebrar a costela de um passageiro desavisado que anda sem cinto nessa coisa louca de viver.
E aí que nessa pausa forçada, eu finalmente me dei conta da engenhosidade que é a máquina humana. Quando um sentido falha, quase que automaticamente aguçamos outro. Meu olfato, antes não tão perfeito e um pouco desviado por um septo, agora é capaz de captar os odores de uma formiga há metros de distância. Uma sagacidade tão violenta que, ontem, ao me dirigir a um hortifruti para comprar uma água de côco, enquanto estava entre as frutas frescas e os freezers, fiquei paralisado ao sentir o cheiro de natal.
Cheiro de natal. Não sei dizer qual a fruta que estava próxima e que me remeteu a essa lembrança olfativa;mas durante 5 segundos eu estava em alguma mesa de algum natal, na casa de alguém, comendo alguma coisa, enquanto certamente pensava que gostaria de estar vivenciando aquilo com a minha família, em um espaço onde não houvesse tanta complexidade e desarmonia entre os pares.
Não sei, bateu forte demais. Foi rápido, mas de repente veio. Posso estar enganado, mas acredito estar sendo perseguido pelo passado. Ando pelos lugares e sinto cheiros que me teletransportam para flashes do passado, olho pessoas e vejo aquelas que já não estão mais aqui - há muitos mortos em vida -, abro meus arquivos de fotos e sou exposto a memórias de 8, 9, 10 anos atrás.
Não sei - e digo muito isso ao meu analista -, mas acho que o passado quer se resolver comigo. Sempre fui favorável à ideia de que precisamos bancar quem queremos ser, independentemente das consequências, mas ocasionalmente a gente tem que lidar com as lascas que ficam pelo caminho enquanto lapidamos essa persona.
O cheiro do perfume metálico que senti e me jogou numa viagem no tempo, me remeteu a um tempo muito incerto em que eu utilizava aquele perfume. Diz mais sobre mim. Nunca duvidei disso. Não é bem um acerto de contas com o passado, é um acerto de contas comigo e com as escolhas que fiz para chegar até aqui. Não se pode olhar o Davi sem também observar o mármore que se quebrou para se chegar até ele.
Na próxima semana, quando eu espero já ter voz e encerrando meu tratamento com antibióticos, vou falar ao meu analista sobre isso.
Até lá, mas do que mostrar como sou e ser como posso, vou tentando pensar em um natal melhor para esse ano. O ideal não existe, então, não sei… que seja leve. Leve. Gosto disso. Que seja leve!