Rediviva 3 – Mal-entendidos
Estar absorta em Lavatães, em casa dos meus anfitriões, é um estado de alma difícil de atingir. Perdida na estrada sem saída desta margem bucólica do rio Leça, a Casa da Pena nem à hora da sesta é sossegada.
Cogitava eu no termo que o Amadeu usava para se referir a alguém de nomeada. “Caráter limpo e equilátero”! Que quereria ele significar com “equilátero” ao referir-se a uma personalidade que considerava?
– O Luís da mercearia é um mouro de trabalho. Um tipo equilátero! – referia-se o Amadeu ao fornecedor de vitualhas que semanalmente visitava a moradia. Como outrora os alforges da azémola do azeiteiro eram a cantina da fábrica a domicílio, agora a Ford Transit do Sr. Luís desempenha o mesmo ambulante papel. E recolhia, em troca direta, damascos, peras, figos, ameixas e alguns pêssegos, frutos quase todos do corrente mês de julho.
Nisto, o filho benjamim do Amadeu irrompeu pela casa dentro em altos brados, mão em tenaz num joelho, gritando que uma vespa o tinha ferroado.
– Vem cá, Gasparinho! – Ó Cecília, traga-me por favor sumo de cebola ou um bolbo de alho bravo. Rápido, que é preciso, antes de mais, mitigar a dor ao pequerrucho!
Terminado o curativo, o arrebito pôde voltar para a frente de batalha no quinteiro da propriedade, pois, no campo, as carícias ardentes do sol não são tão ásperas como nas cidades, onde os aguadeiros surgiam ao sinal de canícula, de olho no negócio, de tarro cortiço e copo. À sombra duma dorna – a que chamam baça – os cães dormitam, indiferentes às travessuras do ganapo.
Tinha sido ontem à tarde.
Quando, em Santo Tirso, disse ao meu amável informador – que dava pela graça de Serafim – que gostava de ver a cidade do alto de um dos prédios para ter uma visão genérica, ele levou-me ao cimo duma torre a poente, perto do Campo de Futebol e, depois, à torre dos Carvalhais, mais a nascente.
Depois de ter apreciado a grandeza da minha terra natal, com as suas ruas bem delineadas, jardins floridos e construções de vivendas ricas alternando com prédios autênticos arranha-céus, observei para o meu guia turístico improvisado um ponto de vista que ele achou surreal.
Como ele olhou para mim desconfiado perante a minha observação de que eu achei muito diferente a cidade vista de cada um dos ângulos! Por respeito não o referiu, mas não queria acreditar no meu ponto de vista.
– Imagine – observei eu, apontando para uma mesa – que eu afirmava perentória: isto é uma cadeira… e apesar de todas as tentativas da sua parte para me corrigir, eu insistia que é uma cadeira.
– Você decidia que eu sei em português o significado de cadeira e mesa. Prova que a minha vista não está deficiente. Mas eu insisto.
E recalcitrei, perante o pasmo do Serafim:
– Agora assuma também que é, para si, da máxima importância, tanto em termos do seu bem-estar pessoal como dos seus valores morais, manter para todos que é uma mesa e não uma cadeira. Desta forma, a minha insistência no contrário ameaça o seu sistema de segurança interno e externo.
– Como é que reagiria à minha insistência, Serafim? Provavelmente argumentaria que eu estou louca e sofro alucinações ou que eu sou uma pessoa perigosa e subversiva, em qualquer caso a necessitar de ser detida, ou sendo você uma pessoa “tolerante” decidiria que, definitivamente, eu sou uma pessoa “estranha” que deve ser evitada.
Amarílis
fabricia.amarilis@gmail.com