Ruínas Sob as Águas

Crônica

Ruínas Sob a Água

As chuvas pesadas começaram como um simples aviso da mudança das estações, mas rapidamente se transformaram em um dilúvio que, sem cerimônia, engoliu as cidades e expôs as fragilidades de uma infraestrutura há muito abandonada. Mulheres, homens e crianças, acostumados a ver o céu encoberto por nuvens, agora se viam de costas para o horizonte que, outrora, simbolizava esperança. Naquelas horas de calamidade, o que se revelou foi um retrato desolador de descaso e negligência.

Lá estavam os carros, como brinquedos de plástico levados por uma criança desatenta, boiando e se espremendo uns contra os outros nas ruas transformadas em rios. Lojas, escolas e lares, que um dia vibraram com sorrisos e sonhos, agora flutuavam sob a água barrenta, enquanto as sirenes ecoavam ao fundo, quase como uma música triste que ninguém sabia como desafinar.

E o que dizer das autoridades? A cada tragédia, promessas de que “desta vez” tudo seria diferente. Mas ao olhar para os rostos dos cidadãos — chapados de indiferença ou desespero — fica claro que as promessas se tornaram meras palavras jogadas ao vento. O asfalto rachado, as galerias pluviais entupidas, a falta de drenagem eficiente e os organismos habitacionais crescidos de maneira desordenada são testemunhas vivas de que a prevenção nunca teve a prioridade que merecia.

Imagens de maquinários prometidos que nunca chegaram, e de reuniões que se transformaram em mera formalidade, povoam a memória coletiva de quem suportou mais uma catástrofe. As redes sociais se tornaram o canal onde o grito de socorro se mistura à indignação — “Estamos sozinhos!” — enquanto as autoridades, em algum lugar, permanecem atrás de gabinetes, desviando os olhares dos que precisam de ação.

E entre os escombros, os laços de solidariedade se fortalecem. Vizinhos que nunca se falaram, agora compartilham alimentos, cobertores e abraços. Essa união, que brota na adversidade, dá um respiro de esperança. Contudo, é uma esperança que grita por mudanças. É uma esperança que não quer mais ser tratada como um mero эпизódio de uma novela mal escrita, mas uma realidade digna, onde as vozes da população são ouvidas antes que as águas voltem a levar o que é de todos.

Sentados nas calçadas, os olhos marejados refletem as luzes de um futuro que pode ser, se a consciência coletiva despertar do torpor em que foi mantida. E a pergunta ressoa entre as paredes das casas encharcadas: será que aprenderemos, desta vez, que a chuva é apenas um aviso e não um destino? Que cabe a nós, cidadãos e autoridades, desde já parar de esperar a próxima enchente para começar a construir as verdadeiras defesas?

Assim, sob a imensidão das perdas, a esperança renasce em pequenos gestos. E talvez, quem sabe, nesta luta constante por justiça e respeito, possamos exigir não apenas cidades mais seguras, mas também uma sociedade mais atenta e responsável.

Vera Salbego