Lição de arte
Acho que nasci suscetível aos encantos da arte. Menino criado no mato, eu não tive o privilégio de frequentar teatro, de ir ao cinema, de ir a saraus, de ler grandes livros, de visitar museus ou frequentar saraus pomposos, mas enxerguei arte nas coisas simples a que tive direito e que me servem de referências no meu engatinhar pelo caminho artístico das palavras.
Na infância, eu tive a oportunidade de observar a minha avó materna rasgando, pacientemente, palhas de carnaúbas e com elas tecendo longas tranças para confeccionar chapéus. Com um instrumento de ponta fina e cortante, ela resgava cada palha, resignadamente, em partes adelgaçadíssimas para compor as tranças. Sem estudo das medidas de comprimento, ela fazia uma trena de cordão, e não se perdia nos cálculos das cabeças para fazer os guarda-sol dos homens sertanejos. Além do cordão, no quarto contíguo à cozinha, ela guardava uns três blocos cilíndricos (nos tamanhos grande, médio e pequeno) feitos de madeira maciça. Esses instrumentos foram herança deixada por sua avó materna. A linha de costura, Dona Mariinha mesma fabricava com o algodão que catava nos aceiros do terreiro. De fora, eu enxergava naquilo um trabalho penoso e de muito sofrimento que ninguém poderia oferecer qualquer ajuda. A obra era sem por cento autoral.
Adianto que ela nunca vendia o produto do seu trabalho artisticamente desenvolvido. Chego a achar depois desses anos que ela trabalhava por terapia; para espairecer a lembrança do falecido esposo, mas era exigente na confecção. A exigência começava pela escolha da palha. Os interessados no chapéu, geralmente familiares e amigos, encarregavam-se de procurar a matéria-prima para a confecção da obra, geralmente encontrada nas carnaúbas do Açude da salgada, e aguardavam o desenrolar do processo.
“Quem quiser chapéu bem feito traga boa paia e espere. Não me pregunte quando sai. Entrego quando ficar no ponto”.
Ninguém ousava contrariá-la porque todos entendiam o capricho da velhinha de casaco azul. Mas valia a pena a espera. Eu esperava ficar adulto para ganhar o meu. Ela viajou antes de concretizar o meu desejo.
Por ano nunca chegavam a mais de seis os contemplados. As palhas endurecidas apanhavam bastante até se renderem à domação da artesã. Algumas insistiam na rebeldia e não eram perdoadas de mais um castigo. Cheguei a presenciar por mais de uma vez a minha avó desmanchando as abas inteiras de um chapéu para tirar um pedaço de trança arrebitado. Essas amostradas se destacavam mais do que as partes perfeitas e precisavam ser retiradas. Não se adequando ao lugar no chapéu, serviam de combustível para acender o fogão à lenha. “Não atende ao meu rogo arda no fogo”. Parece que quem produz arte não aceita insubmissão. Minha avó me legou esse aprendizado.
Outro exemplo de trabalho que exige paciência e precisão eu tirei dos ferreiros lá da minha localidade. Trago viva na memória a imagem do ferro vermelho como a brasa que lhe aquecia na entrada da boca do fole. A chapa espessa de aço era aquecida e dela eram retiradas as porções nos tamanhos desejáveis para a produção de cada instrumento. Acompanhei por mais de uma vez o processo de fabricação de foices, roçadeiras, enxadecos, machados, alavancas, ponteiros e outros instrumentos úteis para o desenvolvimento de trabalhos rurais. Eu me admirava como braços humanos conseguiam transformar algo tão rígido em verdadeiros artefatos dignos de contemplação.
Quem comprava um desses instrumentos na feira, sem visitar o ateliê, talvez não imaginasse o sofrimento pelo qual passou o seu criador para ter às mãos o produto. Antes de ganhar a forma desejada pelo ferreiro, o ferro, amolecido pela alta temperatura, apanhava a marretadas do artesão. Cheguei a ouvir gemidos do ferreiro quando errava um golpe no aço e acertava uma unha. A cor do sangue se confundia com a cor do ferro. Durante o suplício, pequenos fragmentos, que mais pareciam lágrimas quentes, se desprendiam e queimavam os fornidos braços do homem que sustentava firme a marreta, mas não havia desistência por parte do “agressor”. Uma surra durava em média três minutos. Depois desse tempo o ferro esfriava enrijecia e precisava novamente voltar ao forno para ser novamente aquecido. Com mais ou menos uma hora de fogo e peia, estava formado o eivado de uma foice ou de uma roçadeira. Durante um dia, um ferreiro experiente conseguia fazer quatro ferramentas. Não preciso descrever o esforço físico exigido do artesão que passava oito horas nesse processo de aquecimento e batida. Era com sabor de ferro e fogo o pão que esse trabalhador levava à boca da família.
Embora admirando esses dois artistas que mencionei, não pude dar continuidade ao ofício de nenhum deles. Minha avó partiu antes de me ensinar a dobrar as palhas para confeccionar chapéus. Saí do meu lugar antes de adquirir força para manejar uma marreta e distorcer as pesadas barras de ferro e as transformar em armas com as quais os homens sertanejos enfrentam as batalhas diárias do sertão.
Meu ofício, que também exige paciência e persistência é combinar palavras e as transformar em ideias. Mas não sei exatamente quem são beneficiados com os frutos do trabalho que produzo, mas busco realizá-lo com a mesma severidade que teve a minha avó na confecção de chapéu e com o mesmo esforço do ferreiro que martelava o ferro na sua oficina. Disse uma vez o renomado escritor português Lobo Antunes: “É preciso muito sofrimento para escrever bem. E tocar os outros”. Por enquanto sofro muito para produzir uma escrita que possa tocar, principalmente, aquelas pessoas que não conseguem entender as ideias de escritores complexos como Lobo Antunes. É meu desejo produzir textos que se tornem inteligíveis pelos homens que domam palhas e dobram ferro como reconhecimento da lição de arte que eles, involuntariamente, me deram.
Joacir Rocha, 28/04/2020