CÍCERO ANDRADE DA SILVA
Ele reapareceu. Direto do povoado Caruru, zona rural de São José da Laje, para o mundo. Pontualmente às 8h10, como havia combinado com o funcionário telegrafista. Desta vez, porém, Cícero mesmo abriu a porta da repartição, sem que, para tanto, necessitasse do prodigioso auxílio da professora de Inglês.
Acontece que Cícero Andrade da Silva é sujeito tímido, desconhecedor de horário oficial de repartições públicas e do mundo confuso das cidades. De modo que, para ele, que mora e trabalha na zona rural, do alto dos seus 76 anos, longe do asfalto e das repartições, 11 horas e 56 minutos é o mesmo que meio dia. Ou seja: horário de almoço. Daí que, quando da primeira vez, ficou parado em frente ao prédio amarelo, pés juntinhos, chapéu embicado para a porta, olhos presos no cartaz branco A4 afixado ao vidro da porta de aço.
Um cartaz, apesar de grande e eloquente, para Cícero, contudo, indecifrável, no qual constava (e consta) o horário de funcionamento da repartição. Não fosse a providencial atenção da professora de Inglês, cujo itinerário coincidiu com o dele e que, afável e gentilmente, lhe abriu a porta, mostrou-lhe o caminho e disse “Tá aberto.”, Cicero talvez ainda estivesse longe do seu Caruru.
– Vim aqui resolvê um negócio, disse ele, em sua voz aguda, forte, valente.
– Venha cá. Pode vir, respondeu o telegrafista, em tom menor, porém suficientemente ligeiro, como convém aos telegrafistas.
– É o meu cartão…
– Qual o Banco?
– É do Bradesco…
– Ah, é do Bradesco... Me dá tua identidade.
– É Cicero Andrade. Identidade?
– Cicero Andrade da Silva.
– Precisa do outro cartão véio?
Cícero evidencia não está acostumado aos protocolos, aos procedimentos, à burocracia estatal das repartições públicas. Delibera o telegrafista adotar uma abordagem cautelosa, centrada em linguagem simples e direta, envolvente.
– Não. Já venceu?
– Já venceu! O gerente disse: "Procure no correio dia 15!". É hoje né? Eu, pra mim, aqui hoje era fechado, mas num é, é?
– Quem dera, respondeu o telegrafista, distanciando-se um pouco de seu dever de imparcialidade no exercício da função de telegrafista.
– Cícero Andrade da Silva... Oiá, é da nova!
– É da nova! Eu tirei tá cum dois mêi, que a otá num tava vogando mais...
– Tirasse aonde?
– Oi?
– Tu tirasse ela aonde?
– Tirei ela em Quipapá. Aqui num tira não. Cum um mêis o rapaz troxe... Um galego... Ele carrega gente pra la´. Um galego que tem um carrinho de confeito, que trabalha na Serra Grande.
– É rápido lá?
– Aí o senhor tá recebendo na folha, é? Por enquanto...
– Não. Tô recebendo no cartão... O cartão tá aqui. Agora tá vencido.
– Tá valendo ainda?, pergunta o telegrafista com ar de espanto.
– Tá não, tá não, tá não senhô. Venceu o mêis passado. Mêis passado ainda recebi.
– "Cicero Andrade da Silva", digita o telegrafista na sua máquina de busca de nomes.
– Isto mesmo. Eu digo "Eu vô hoje... Meu vizinho do sítio disse, rapaz tu resolve amanhã. Ôxe, eu disse, amanhã pode ser que seja fechado, feriado..."
– É não. Tem feriado este mês não, falou convicto o telegrafista, pois consulta diariamente o calendário em busca de feriados.
...
– Chegou ainda não, seu Cicero, falou o telegrafista, muito decepcionado com sua máquina de procurar nomes.
A mesma máquina que já encontrou tantos nomes esquisitos, estrangeiros, árabes, paulistas, americanos, mostrou-se incapaz de revelar um nome simples, direto, nordestino, alagoano, lajense. Diante do insucesso, teve vontade o telegrafista de encerrar o expediente mais cedo, um minuto antes do horário oficial, como forma de retaliação. Olhou para o teto da repartição, respirou lentamente, viu a professora de Inglês sentada, paciente, aguardando a vez, talvez com grande esperança de que máquina de nomes não lhe tenha esquecido também, tal qual esqueceu um nome simples, direto, nordestino, alagoano, lajense: CÍCERO ANDRADE DA SILVA.