Mares de loucuras
Fui da minha mãe o último rebento. A irmã, antes de mim, caçula, era nove vezes mais velha do que eu. E os dois mais antigos, já estavam até empregados e estudando à noite.
Isto parece até um enunciado de uma questão matemática de prova, mas não. Na verdade, é uma espécie de ilustração para dizer que eu fui criada em ambiente adulto. E isso fez muita diferença na minha formação. Tenho, por exemplo, a lembrança de me aconchegar ao irmão mais velho, que se julgava pai de todos, todas as vezes que ele ligava a radiovitrola. Ficávamos horas ouvindo Elizeth Cardoso, Bienvenido Granda, Lucho Gatica e muitas outras estrelas que brilhavam no cenário artístico na década de 70.
Foi um tempo muito difícil. Mas, apesar da ditadura, havia um caldeirão efervecente de novidades que sacudiram a nossa cultura. E apesar de todos os influxos externos que nos traziam o rock, a guitarra e os Beatles, eu permanecia fiel ao gosto musical do meu irmão, especialmente ao Gatica, cuja voz parecia um veludo acariciando os ouvidos.
Eu tinha mais ou menos uns sete aninhos nessa época e, provavelmente, isto explique o porquê de eu ter sido marcada tão profundamente pela música latina e sua passionalidade. Era um convite ao pensar e sofrer por tantos versos lindos e fortes nas melodias que desaguavam diariamente no peito daquela menininha.
Nunca comentei em família sobre aquelas dores que me causavam os boleros, as batidas dos bongôs, castanholas e aquela atmosfera cá dentro... a lua lá fora... Meu imaginário foi invadido por Lucho e tudo aquilo passou a fazer parte de mim. Talvez por isso eu chorasse na janela baixinho, olhando a noite que não parava de esconder as coisas felizes. Talvez fosse isso que me deixava entre a pele e o arrepio. A vitrola já estava desligada, mas a voz do Gatica permanecia em mim e eu tinha que partir em La Barca pro resto da minha vida, morrendo de medo que naufragasse o meu viver. Este, dentre todos os versos de todas as canções que ouvi, foi o mais ameaçador e o que mais me impressionou. Tanto que, desde aquele tempo até o dia de hoje, cuido da minha vida com bastante esmero para que nunca eu tenha que passar por mares de loucuras e naufrágios. E olha que até Poseidon sabe do que tive de enfrentar pra superar o trauma do Titanic!
Sim, ok, já passou... e há bastante tempo, já tenho idade suficiente para maiores e melhores reflexões sobre a vida. Mas pensa em uma garotinha preocupada com o naufrágio da sua vida feliz de infância escutando o Gatica...
Ai, ai, ai, boleros...