OLHAR COTIDIANO
Os cachorros ladram, um aqui outro acolá. Eu na cama a bocejar, na batalha entre o querer e o dever, vence a obrigação e o compromisso. Mas, se seguro morreu de velho, e ainda morreu, sigo sua sina de precavido e o despertador se põe a despertar em seu urdir maquinário, hoje eletrônico. Mas para não cair no doce vício de sonecá-lo e sonecar-me, ele desperta na sala, longe de meu leito, para assim o deleito não me seduzir e o transe da manhã sonolenta, me ofuscar a atenção com meus compromissos.
No banheiro a água fria esfria meu rosto, é desgosto, mas é remédio. Minha mãe sempre dizia para lavar o rosto e não ficar com a cara do outro dia. Lavar o rosto ainda é ritual de renovação, de um dia com cara nova. Desperto novamente pra vida, arregalo os olhos, encaro o tédio e a vida para levar, uma vida escolhida, não há quem culpar.
Fogão aberto, canecão, açúcar e pó, o café cheira longe vejam só. Na mesa, pão manteiga e leite. Mas são tantas vozes a gritar na janelinha da tecnologia que deveria ser ovo, aveia e frutas. Sinto culpa, sinto fome, ignoro o saudável e me envolvo com o pão que vem da infância. Santa ignorância! poderia mudar. Mas no conforto e afeto, no café de sempre, simples e terno, outra vez me desperto para o dia iniciar.
Olho mensagens, cobranças, solicitações. Vida social eletrônica. “Porque o outro tem uma vida melhor? Coitado daquele outro.” E a vida postada mexe com meu imaginário, se faltar malícia, tudo vira notícia, tudo é verdade para os olhos irracionais. A sexta é o foco, a cerveja uma deusa, e mostrar nosso melhor, uma gana, mesmo que maquiado, filtrado e editado. Oração ritualística de uma vida d-espiritualizada.
Café tomado, celular olhado, dente escovado, e os poucos fios da cabeça alinhados. Beijo bom dia na esposa, beijo na filhota. Abro a porta e o frescor da matina me acaricia. Vejo serras, as vezes verdes, as vezes secas, depende da fase do ano, do clima tempo. A cadela me acena com o rabo. Engraçado, seu único interesse é um afago. Um lambe-lambe sem fotos.
Desço as escadas do terceiro andar, tomo a rua. Vejo gente no ponto, esperando prontos para mais um dia, o coletivo que os levaria e leva numa leva de gente, alguns pensativos, outros contentes. Vejo cachorros ruando seus territórios. Vejo gatos lambendo-se e alongando. Janelas abrindo para o ar correr, hálitos saindo e brisa fresca entrando.
Caminho a pé, vendo os detalhes urbanos. Faixadas bonitas, faixadas simples, feias esquisitas, caprichadas, borradas. Vejo pessoas. Meninos e meninas, com suas mochilas, seus olhos de sono a caminho da escola, uns com vontade outros com marola. O operário, anda ligeiro, com sua ração para o dia inteiro, marmitas e térmicas misturam e dançam com suas ferramentas no balanço do movimento. Vejo a moça bonita com seu uniforme, puro charme para atuar no escritório. Motocas roncam, carros vrunvruam, levando gente, levando coisas para vida seguir. Padarias abertas, farmácias abrindo. E a manhã vai sorrindo para os que andam com fé. Na calça lavada tem sempre ocupada a senhora águar e varrer com a mangueira esticada.
Vejo tanta gente, que não me veem. Alguns olham para o nada, para o horizonte de concreto, outros cabisbaixo a pensar, em seus I-phones a olhar, podcasts a ouvir. Cada um em seu mundo, de encanto, de assombro. Veja moça da ótica, que com seus óculos me olha seco e seco lhe olho. O cheiro de feijão cozido, sai das portas do restaurante comprimido na esquina do cento. Caminhões esperam para descarregar os móveis que em breve irão carregar de volta da loja. A moça da Vivo, vestida de roxo espera a loja se abrir. Os mascates montam sua banca em seu cotidiano urdir. E assim, cada cidadão trança seu fio no tecer de mais um dia na cidade. A ansiedade dita a marcha, nesse filme que passa, nessa vida que fluiu do viver humano, que entre acertos e enganos busca a felicidade. Etéreo buscar de todos nós que aqui caminhamos construindo o caminho no ato a de caminhar.
Chego ao Neca Pimenta. Esquina onde um barão se encontra com um presidente. Dou "bom dia João!", respondendo ao bom dia do porteiro. Tomo o elevador que me eleva do chão às nuvens. E nesta construção cotidiana de todas as manhãs chego ao meu escritório para mais um dia útil. O que não faz dos outros dias inúteis, pois a vida nem sempre será uma antítese, tão menos uma síntese.