A Música e O Espírito
A Música sempre teve um poder bruto sobre mim. Um domínio avassalador, absoluto e, como um regente omnipresente, comanda meu humor com certo chiste. Me obriga a ir embora de festa que acabou de começar, me fazer chorar enquanto dirijo ou no meio de um bar... Esfíngica, faz sorrir, dançar, palmear, assobiar, cantar a plenos pulmões para a dor amenizar.
A Música tem cheiro, tem cor, tem sabor, é tátil. Pode ser crespa ou macia, quente ou fria. Às vezes ocupa espaço físico. Noutras, é brisa ou vendaval que deixa tudo fora do lugar. Nunca anda só. Vem sempre acompanhada por alguma memória. Uma imagem, uma ocasião, uma pessoa que já se foi ou não. Um sabor, um filme, um odor. Se descuidada eu estiver, acabo me apaixonando por ela, mesmo que não seja novidade.
Então, passo dias a fio enamorada e em hipnose enérgica. Ouvidos sempre em treinamento, para separar e ouvir cada instrumento e cantarolar as harmonias de forma mimética. Notas, acordes, progressões identificados, separadamente apreciados. Horas de deleite com esse idioma encantado de belezas multifárias, que me presenteia com os devaneios mágicos das letras e suas fruições literárias. Figuras de linguagens, jogos de palavras, aliterações, eufemismos, metáforas épicas e todo tipo de libertinagens poéticas.
Muitos ironizam essa minha relação passional com a Música, porque não sei tocar nenhum instrumento. Tolos que precisam enquadrar todos em caixinhas pré-moldadas. Nem imaginam que tenho com ela nosso próprio Universo de conexão: a Dança. Arte que venero com tanta doçura, que quase poderia dizer que é um contra ponto à impetuosidade da Música. Mas, nada visceral é tão simples assim. A Dança também tem suas exigências enérgicas e brutais.
Ah! Desconectar do mundo lá fora e se doar a elas, Música e Dança. Sincronizar respiração, movimentos, sons, palavras, batidas. Pausas, notas, tempo, contra-tempo. Palmas, assobios, isometrias, clímax, anticlímax. A câimbra na panturrilha esquerda, o suor transbordando por cada poro, a boca seca, os olhos ardendo. O desespero para acompanhar a contagem sem se mover como um robô. E a coreografia? A essa altura, quem lembra mais? Qual o próximo movimento? Que sorte tem a primeira bailarina que tem uma coreô só pra ela. Dá até para improvisar. Os dedos dos pés latejam. "Eu só quero ir pra cochia!". E a odiada e eterna guerra entre a força do salto e a leveza do pouso? Que inferno administrar esse antagonismo muscular! E como prende o abdômen, corre e respira ao mesmo tempo? Enfim, o caos do big bang acontecendo bem aqui comigo e a única coisa que meu cérebro consegue fazer é contar 1, 2, 3, 4/ 1, 2, 3, 4. Ad Infinitun.
Já não sou mais dona de mim. Já nem sou mais eu mesma! A Música inundou cada pedacinho do meu corpo. Ossos, veias, músculos, tendões. Falanges, articulações, martelo, íris, alvéolos, ligamentos. Entranhas, tireóide, medula, bile, glóbulos brancos, massa encefálica. Vértebra por vértebra. Costelas, escápulas, amor próprio e instinto de sobrevivência. Então, no momento mágico de giros, tudo explode em completa sinestesia e abre o portal por onde a Música consegue libertar meu Espírito. Em contrapartida, ele deve lhe trazer inspirações dos céus, nunca sonhadas por aqui.
Nada novo no front. Sabemos que a possessiva, onipresente e toda poderosa Música jamais abriria mão de reinar plenamente absoluta, para se doar à Dança se não tivesse suas próprias motivações. A Dança rouba completamente a atenção do público. Se destaca e se sobrepõe a qualquer outra manifestação artística, iclusive à música, que se torna sua coadjuvante.
E meu Espírito voa a procurar nos céus alguma divindade capaz de salvá-lo dessa existência não-alada. Não sei se isso é possível ou, sequer, se existe tal criatura encantada. Mas, quem sou eu para dar opinião ou fazer qualquer tipo de deliberação sobre os mistérios do Universo?
Sei que a Música ri dele. Diz que é um inocente, bobo, teimoso e insistente secular que jamais encontrará essa fantasia que ele mesmo criou. Uma esperança entorpecente inexistente. Um impossível, facilmente detectado por qualquer ser.
Esquece-se, contudo, a Música que a palavra Espírito tem sua raiz etimológica no Latim "spiritus", que significa "respiração" ou "sopro", e também refere-se a "alma", "coragem", "vigor". Essência divina, imortal, é o princípio intelectual, imaterial, individualizado, que sobrevive à matéria. Dotado de razão, consciência, livre-arbítrio e responsabilidade, se meu Espírito se ressente por estar preso ao chão e, por isso, quando pode, voa, esse voo nunca será em vão.