BANHO MARIA
No meio da tarde, depois de um forte temporal de verão e ainda sonolenta de mim, sigo vozes vindo da cozinha, tagarelas e animadas, vozes de mulheres, de minha mãe, irmãs, tias, primas e amigas, todas juntas como num ritual próximas ao fogão. Riem e falam todas, ao mesmo tempo, e ao me verem cambaleante ainda pelo sono, correm em minha direção, quando sou envolvida pela cintura, braços e abraços, como numa dança, e levada até a mesa repleta de tigelas, colheres e fôrmas, que lembravam uma preparação festiva, a qual minha rasa memória não conseguia se lembrar.
Vendo-me atordoada com tanto alvoroço, minha tia Laura traz uma tigela com duas grandes barras de chocolate, e começa a fatiá-las lentamente ao meu lado, na tentativa de me envolver naquela atmosfera sempre muito pouco convidativa para mim: o da cozinha. As fatias enroladas do chocolate caem lentamente na tigela, enquanto seu olhar franzido atravessa meus pensamentos... para onde teria ido minha alegria das pequenas coisas? Meu coração sempre bate forte quando me aproximo da minha infância, onde as mulheres de minha vida sempre souberam o que eu seria no futuro, menos eu, incrédula que sou do quanto a palavra atravessaria desertos agarrada a mim.
Chocolate fatiado, coube a mim levá-lo ao fogo em banho maria. Quando crianças, eu e minhas irmãs disputávamos, quase que a tapas, o que sobrava na tigela, fazendo parecer que o restinho da calda era mais gostoso que o próprio bolo imponente em cima da mesa. Um espírito competitivo que me acompanharia a vida inteira e que, chegados os cinquenta anos, se distancia a cada nova revisão de capítulos de minha história. Minha mãe sempre disse que esse dia chegaria, o de entendermos que podemos descansar, adiar por um tempo decisões, sem a angústia da escolha, nem a pressa do ontem. Podemos, simplesmente, não fazer nada enquanto decidimos.
Atrás de mim, em pé no fogão, elas se revezam no cuidado de me ensinarem novamente a mexer, devagar e sem urgências cotidianas, a calda adocicada que por anos deixou ser desejada e saboreada, sempre que silencio vozes que poderiam me levar para um tempo mais ameno, na varanda de casa, ouvindo meus pensamentos e coração, reencontrando todos os femininos que habitam em mim. A quem devo pedir, a não ser para mim mesma, que a alegria continue a me visitar ainda que em sonho, mas que me desperte antes do pôr do sol?
BANHO MARIA - crônica de minha autoria selecionada no Selo Off Flip 2024 - Textos de Autoria Feminina