Coração de Peão

Numa fazenda antiga no coração de Minas, havia um grupo de peões se preparando para sair em comitiva, todos montados em seus cavalos, para acompanhar o gado até as terras de Santa Catarina. Os mantimentos estavam conferidos, nenhum dos animais ou cavaleiros estava ferido. Com o toque sonoro do berrante, os bois iniciaram uma marcha constante.

Pelos mais diversos terrenos eles passaram, desde estradas de chão batido a pastos alagados pela cheia do rio na última sexta-feira. A manhã correu mais rápida que um corcel indomado, a tarde se arrastava como uma sucuri gorda pela margem do rio, e a noite era implacável como uma onça caçando no mato. Eram vinte ou vinte e cinco dias de cavalgada. As chuvas geladas e o sol de rachar não facilitavam a jornada, mas a roda das modas de viola e as histórias que cada um contava, de coisas simples e causos inacreditáveis que carregavam na bagagem, ao redor da fogueira ajudavam a manter o espírito e a força da comitiva intacta.

O pasto rapidamente dava lugar ao terreno acidentado e seco, e vice-versa. Os dias quentes separavam os homens dos meninos, muito embora ambos voltassem a ser crianças ao avistarem um lago ou um riacho onde amarravam os cavalos, descansavam o rebanho e se banhavam nas águas geladas para remediar o calorão. As noites frias traziam consigo uma névoa quase sobrenatural e os sons misteriosos de animais, muitas vezes desconhecidos pelos homens tão simples. A névoa impedia a visibilidade e dava aos bois uma coragem misturada com agressividade; uns apenas esperneavam, como se tivesse algum zorrilho correndo em meio às suas musculosas patas, outros desgarravam da boiada e se enfiavam na vegetação. Separava-se a comitiva: dois ou três peões iam atrás dos fujões em meio à mata, enquanto o restante dos homens ficava com a boiada para evitar que mais animais dessem-lhes uma volta.

Às vezes a cavalgada pela mata era traiçoeira, mas geralmente os bois eram recuperados, gerando causos e histórias sobre almas penadas nas copas das árvores, para serem contadas nos vilarejos isolados e pequenas tribos indígenas remanescentes pelo caminho visitado, onde a comitiva conseguia suprimentos e alguns deixavam seus solitários corações.

Durante a dura jornada, a saudade do lar judiava. A mente de cada um dos peões esgotava-se como a água em seu cantil e quebrava como os galhos secos pisoteados pelos bois e pelos cavalos durante o caminho, mas o apoio era mútuo. Cada um cedia uma palavra de conforto, uma moda de viola, uma história de sua terra, e assim um acalmava a dor e o desespero do outro, tornando cada um daqueles homens uma segunda família, irmãos de cavalgada, irmãos de boiada, irmãos de comitiva.

Os peões mais novos assumiam vez ou outra fardos mais pesados, como, por exemplo, ter que capturar um boi bravo desgarrado sozinhos ou guiar uma pequena parcela da boiada por um trecho para demonstrar sua coragem e suas habilidades como vaqueiro para os mais velhos, ganhando, na maioria das vezes, o respeito daqueles mais experientes que de si mesmos mais novos se lembravam.

As aves no céu cantavam, pareciam guiar e seguir o caminho dos peões viajantes, acompanhando-os do Sudeste ao Sul, numa viagem sincronizada. Cada rio, que pareciam veias ou serpentes que cruzavam o caminho da comitiva, era atravessado com uma oração antes da travessia e os gritos de comemoração ao chegarem ao outro lado sem baixas nas cabeças e o livramento dos encontros com o papo-amarelo.

Vez ou outra, durante uma manhã quente, uma capivara nadando ao longe ou um peixe grande pulando para fora d'água era motivo para os peões tocarem no nome da mãe-d'água. Enquanto a maioria se agarrava em oração e temia um encontro com Iara, alguns sonhavam em ver sua beleza mística e sair vivos para contar mais um causo, mais uma outra história. Uivos noturnos eram motivo para os peões mais supersticiosos ficarem de prontidão, por medo ou precaução de um encontro com um feroz lobisomem ou uma amaldiçoada assombração.

Homens simples, cada um com suas superstições, cada um com seus desejos, cada um com seus anseios, cada um com sua própria fé, cada um fazendo um dia melhor. Homens exaustos chegavam ao destino, mais fortes e experientes, carregando consigo mais histórias, carregando consigo mais medos, carregando consigo o futuro nos lombos e nas selas dos cavalos molhadas de suor.

No retorno para Minas, a boiada dava lugar à companhia de apenas uns dos outros e, vez ou outra, de peregrinos em romaria que os acompanhavam até um pedaço do caminho, onde seus destinos tomavam direções diferentes. Era um tempo onde a luz do lampião à noite era a luminosidade que clareava a escuridão do breu noturno, onde uma ventania era motivo de preocupação, onde homens simples tornavam-se heróis ao arriscarem tudo para alimentar as bocas, os mercados da nação.

O berrante tocando ao aproximarem-se novamente da fazenda era mais do que música para os ouvidos das esposas e do patrão, era sinal de que a comitiva tinha completado mais uma vez o trajeto, completado mais uma missão, e podiam agora aproveitar um ou dois dias de descanso ao lado daqueles a quem amavam, antes de se prepararem para cuidar da fazenda e das cabeças de gado remanescentes ou novamente viajar para levarem ou buscarem mais gado, trazendo consigo mais histórias para todo canto visitado!

Sr Gruner
Enviado por Sr Gruner em 22/10/2024
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