Como a gente ganha um dia?
A caminho da Universidade Federal do Pará, eu, minha orientadora da dissertação e o motorista do Uber conversávamos descontraidamente, sem pretensão de “pescar matéria para a escrita”. Estávamos em meio a um trânsito agitado, a avenida em um vai-e-vem frenético e a gente pensando em chegar a tempo para a primeira palestra do congresso naquele dia.
Eis que lanço um olhar pela janela do carro e uma cena digna de uma pintura de Gustav Klimt (talvez) me toma por completo.
Estacionado em frente a uma loja na avenida, uma carroça puxada por um burro, em cima um jovem casal e um menino com roupas puídas e chinelos. Em meio aquela agitação toda, o jovem beija a moça na boca e ambos beijam o menino, ela desce acenando, segue andando em direção contrária e ele segue na carroça com a criança.
Não me contive e gritei: “Olha isso!”. O motorista também se emocionou, a professora ficou curiosa e descrevemos a cena para ela. Todos nós nos emocionamos e esse foi o assunto até chegarmos à universidade.
Poderia ser apenas uma cena comum, cotidiana, sem importância. Mas aquele flash nos levou a algumas reflexões – já não dispomos nosso tempo para o afeto, o carinho, o olho no olho, o “eu te amo” sem palavras.
Quão curativo seria se, mesmo na correria do dia a dia, os casais tivessem tempo para uma despedida mais efetuosa. Não só os casais, mas se as nossas despedidas diárias transbordassem afeto – a despedida do pai, da mãe, do filho, da filha, do amigo, da amiga...
Pensando na cena, lembrei-me de um trecho de uma música de Raul, “Cada vez que eu me despeço de uma pessoa/Pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez/A morte, surda, caminha ao meu lado/E eu não sei em que esquina ela vai me beijar”. Então, antes que a morte nos beije, vamos beijar mais as pessoas que amamos.
Aquela família não sabe e talvez nunca saberá, mas, em tempos de tanta agitação em que nos falta tempo para essas pausas, eles nos deixaram uma grande lição: “a afetividade faz parte da vida e a poesia, de que tanto carecemos, não está nos livros, ela está em fatos simples, como a despedida de casal”.