O último ato do tio Zé
Na pequena cidade de São Barato, onde os pássaros cantam menos do que deveriam e as árvores parecem estar sempre um pouco mais inclinadas, habitava o Tio Zé. Um aposentado que, com seus setenta e tantos anos, tinha mais histórias do que dentes. O cheiro que o acompanhava era uma combinação singular de urina e um hálito que poderia muito bem ser classificado como arma biológica. Em sua essência, ele representava a resistência da vida, mesmo quando a vida parecia ter esquecido dele.
Todos os dias, Tio Zé se sentava na mesma calçada, à sombra da mesma árvore que, ironicamente, lhe oferecia um abrigo que a sociedade não parecia disposta a proporcionar. O banco de madeira, com suas tábuas já desgastadas, era testemunha de suas reflexões. Com uma garrafa de cachaça que ele chamava de “remédio”, Zé observava o ir e vir dos moradores. Ele tinha o dom de transformar a banalidade do cotidiano em narrativas épicas, como se cada pedestre fosse um herói de sua própria saga.
“Olha lá o Seu Arnaldo, sempre apressado. O homem tem mais pressa que a sombra dele!”, dizia, gargalhando e espirrando em direção a quem passasse perto demais. Seus olhos, embaçados pelo tempo e pelo álcool, brilhavam ao contar as desventuras que ele próprio havia vivenciado e que pareciam fazer parte de um mundo onde tudo era possível. Era uma forma de se manter no jogo da vida, mesmo quando o tabuleiro parecia estar em frangalhos.
Naquela manhã ensolarada, um grupo de crianças se aproximou, curiosas e um tanto temerosas. Zé, sem perceber o efeito que seu aroma provocava, sorriu, mostrando uma fileira de dentes que, há muito, haviam feito as pazes com a ausência. Ele começou a contar uma história sobre um dragão que vivia no fundo da represa da cidade, um dragão que, segundo ele, só aparecia para aqueles que acreditavam em seus sonhos. As crianças, rindo e gritando, se afastaram aos poucos, sem saber se deviam ficar ou correr.
Com o passar das horas, Zé se viu mais só do que de costume. Ele começou a refletir sobre o que restava de sua vida. Lembrou-se de seus filhos, que haviam se mudado para longe, e de sua esposa, que partira há anos. A solidão se fez mais densa, como uma névoa que não se dissipa. As memórias começaram a dançar em sua mente, misturadas com a lembrança do cheiro que o acompanhava. O “remédio” já não fazia efeito.
Um dia, decidiu que precisaria mudar. Era hora de se reerguer, mas não sabia como. Então, se lembrou de que seu avô costumava dizer que um homem é feito pelas histórias que conta e, mais ainda, pelas histórias que vive. Com isso em mente, fez uma promessa a si mesmo: sairia de casa na manhã seguinte, tomaria um banho (ou pelo menos tentaria) e se apresentaria ao mundo. Iria atrás de seu dragão.
No entanto, a cidade não estava preparada para o novo Tio Zé. Com um andar arrastado, ele atravessou o centro, atraindo olhares desconfiados. O cheiro ainda estava lá, mas agora havia um brilho diferente em seus olhos. Ele parou em frente à padaria, onde sempre via as crianças comerem pão fresco. O dono, sempre gentil, ofereceu-lhe um pedaço. Um gesto simples, mas que, naquela manhã, parecia carregar o peso do mundo.
Ao mastigar o pão, Zé sentiu um gosto diferente. Era como se cada mordida estivesse arrancando um pouco de sua dor. Ele olhou ao redor, para as mesmas ruas que sempre viu, mas agora com uma nova perspectiva. As cores eram mais vibrantes, e o cheiro de urina e hálito ruim não o definia mais. Era apenas um aspecto de sua história, uma história que ele ainda estava escrevendo.
E assim, enquanto a cidade continuava seu movimento habitual, Tio Zé tornou-se uma lenda viva, um contador de histórias que não precisava de aplausos ou validações. Aquele velho aposentado, com seu cheiro peculiar e sua risada estrondosa, decidiu que o último ato de sua vida não seria de resignação, mas de renascimento. E, para quem tivesse olhos para ver, a mágica estava ali, em cada respiração, em cada riso, e, principalmente, na vontade de viver.
Texto produzido pela INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA)