A história de amor fingida

     Me pediram uma vez pra contar uma história de amor que vivi. Acontece que todas as minhas histórias de amor são segredos íntimos, segredos dos quais fico bastante desconfortável em dividir. Então inventei uma historinha boba, que não era da minha experiência, mas tinha muito de todos os temperos que experimentei em minhas histórias reais, que eu não queria expor. Na minha cabeça ficou aquele clima de segredo revelado misto com segredo mantido e salvo. A história que contei era a seguinte.

     Ela era, na época, pra mim a encarnação da beleza e da perfeição. Olhos grandes e cheios de vida, bem negros, os cabelos também e lisos cortados na altura dos ombros e as bochechas bem salientes, que eu amava pois emoldurada lindamente o seu belo sorriso. Era tímida, é verdade, muito tímida, ao extremo, mas era linda. Devíamos ter uns quinze anos, os hormônios à flor da pele, então eu notava suas curvas, e como notava, não eram perfeitas, não era magra, nem gorda, era feliz e isto sim me fazia muito bem.

     Eu? Àquela época era ridículo, magrelo, dentuço, uma verdadeira assombração ou aparição. Feio mesmo, coisa do fim do mundo.

     Sim, é isso mesmo, exatamente como pensaram, era um amor de escola. Daquelas paixonites que só machucam e nunca saem do mundo dos desejos.

     Ela era feliz, tinha muitos amigos e amigas, vivia sempre rodeada deles e delas. Pra mim, verdadeiros aproveitadores sugadores de sua beleza. Como era bela a minha donzela!

     "Oi, tudo bem?" Eu dizia, depois ficava mudo, sem saber puxar qualquer assunto, depois que ela respondia que sim, ou que não, toda sorridente e espontânea.

     Ué! Mas não era tímida? Acontece que já nos conhecíamos desde a infância, então comigo era diferente, ela podia ser ela mesma. Igual era com os amigos, mais ninguém, ela literalmente travava com o resto do mundo. Eu não, eu era espontâneo com os outros, com ela não, nunca. Só fui espontâneo, extrovertido pra ela na infância, depois, já era.

     Lembro de uma vez, era uma prova complicada, na escola, trabalho em grupo, mas a apresentação seria pra escola inteira. Teatro, música, sarau, o que a criatividade mandasse. A coitada quase reprovou, mal conseguiu recitar os versos que escreveu com o seu grupo, sobre o dia da água.

Eu? De novo eu. Ah! Eu me saí bem. Era feioso, mas, de verdade, falava fácil em público e ainda sabia cantar. Cantei a bela música do Guilherme Arantes: Terra planeta água, no ritmo de rock. Fui aplaudido de pé! 

     "Você devia ter feito o trabalho comigo." Disse a moçoila contrariada e furiosa com a nota que recebeu.

     "É só parar de ser tímida," respondi contrafeito, pois, pra ela, que era tudo pra mim eu era tímido demais e não dizia nada daquilo que sentia. Era amor? Não sabia, mas precisava falar, lhe dizer algo além das velhas brincadeiras de criança.

     Ela não, era o contrário. A mim dizia tudo, de tudo um pouco, e nada para o resto do mundo. Me revelava segredos, sentimentos, pecados. Era lindo ouvi-la falar, e ansioso em saber tudo que sentia. Talvez se revelasse, em algum momento, secretamente apaixonada por mim. Sim, era amor. Tenho certeza agora!

     Então eu a beijaria, como nunca beijei ninguém, nunca me atrevi. Desde que comecei a sentir todas essas coisas, de sensações e desejos. Prometi a mim mesmo que pra ela eu me guardaria. Só me faltava a coragem de me confessar, revelar a ela o meu segredo, o secreto sentimento que por ela nutria, aquele desejo que me consumia.

     Um dia, e isto foi uns dois anos depois. Era já a época da formatura, as aulas na escola estavam no fim, depois vinha vestibular e faculdade.

     “Estou gostando do Paulinho,” me disse ela nesse dia, a voz quase sumida, meio um pedido de desculpas. Eu sem saber o que dizer, fiquei ali, mudo, estarrecido. Ela era o meu amor, e o Paulinho, o meu melhor amigo. Perderia a ambos?

     Sorri, contrafeito, é claro, depois de longo tempo pensando, olhando como ela era linda. Então respondi:

     “O Paulinho é gay! Gosta do Pedro! Mas isto é nosso segredo agora.”

     “Não acredito! Jura?”

     “Sim, eu juro!” confirmei bastante sério a tremenda mentira. Não poderia perdê-la, talvez o amigo sim, mas ela não, nunca, eu morreria. Ela teria de ser minha, a minha donzela.

     Tudo certo por enquanto, tudo ajeitado, só me faltava a bendita coragem de me confessar completamente apaixonado.

     Passou aquele período do agito das festas de despedida, passou também a formatura. Ela prestou vestibular pra agronomia, naquela mesma cidade, e eu direito, em outra.

     Paulinho, o meu melhor amigo, depois dela, é claro, ele continuou meu amigo. O segredo continuou segredo. Ele ia estudar agronomia, igual minha donzela, na mesma universidade. Eu me mudei, fui pra longe e, não, nunca me declarei. A tristeza me acompanhou, doeu tanto que eu achei que ia morrer de desgosto ou de remorso.

     Fiquei só? Não, de jeito nenhum, nem ela, a minha donzela. Tivemos namoros, casos, rolou até um lance sério comigo, quase me casei com uma gótica. Mas confesso que nunca amei outra, queria a minha donzela, com quem aprendi a dividir todos os meus segredos, mas nunca me declarei.

     O problema não foi esse, e apareceu muito tempo depois. Paulinho e Raquel ficaram amigos na universidade, na época do TCC. O meu melhor amigo e a minha donzela, então, aquele segredo apareceu.

     “Como você pode fazer isso comigo meu irmão!” Gritava comigo, o ex-melhor-amigo ao telefone.

     “Você não podia ter mentido pra mim. Sabia que eu gostava dele.” Chorava a minha donzela.

     Depois disto, adeus, nunca mais me ligaram, nunca mais me visitaram, desapareceram. Inútil tentar ir atrás, saber notícias, sumiram na fumaça, igual ninja.

     Me formei com louvor na faculdade, era advogado agora, montei escritório, clientela, comecei a trabalhar. Dos amigos eu nunca mais tive notícias. Me casei com a gótica, dessa vez eu já a amava, fazer o que, era o que eu merecia. Mas eu não quero desmerecê-la, cuidou bem de mim, mesmo sabendo da minha donzela. Isso mesmo, contei a ela toda a minha história de amor platônico, e a briga, e, o segredo. Ela me amava, ah como me amava a gótica.

     De Raquel e de Paulinho nunca mais tive notícias, dez anos se passaram, desde a intensa briga. A gótica se cansou de mim, se separou, me tirou quase tudo o que possuímos, depois que me chifrou com o Pedro, o “segredo” do Paulinho. Casei de novo, pouco tempo depois, agora seria pra valer, ia durar a vida toda, aquele casamento. Ela era doce, e santa, uma pureza de mulher, a Fernanda. Que nojenta, depois de um tempo não gostava mais de me tocar, o casamento durou seis meses.

     Então um dia apareceu no meu escritório, adivinha quem.

     Isso mesmo, Raquel, queria se divorciar. Ficou sabendo que eu era especialista em divórcio litigioso. Talvez pudesse lhe ajudar.

     Olha só que contradição. Pegou Paulinho na cama, um dia que saiu mais cedo do trabalho, com Pedro, aquele com quem a gótica me colocou chifres.

     “Pensei que era só fofoca,” falou a minha donzela, “quando você me contou o caso do Paulinho com o Pedro”

     Fiquei pensando: “Que fofoca?”

     “Achei que você só queria atrapalhar meu lance com ele, porque estava afim dele…e não queria me magoar!      Vocês estavam sempre juntos…sei lá, era estranho…minhas amigas que comentavam…”

     “Mas o quê?” Perguntei me sentindo muito ofendido. mal sabia ela que era tudo por amor a ela mesma.

     “Me perdoa o mal entendido, perdemos anos de amizade.”

     “Raquel, saiba que eu fiz tudo o que fiz, foi porque eu sempre te quis. Eu te amo!” Finalmente me declarei, saiu um peso gigante das minhas costas. O coração finalmente estava leve e feliz.

     “Sai fora moleque,” ela sempre me chamava assim quando estava brava, “você pra mim sempre foi como um irmão.”

     “Mas Raquel, somos adultos. Me dê uma chance, por favor.”

     “Passar bem Júlio, vou arrumar outro advogado. Depois a gente conversa.”

     Saiu toda esquentadinha do meu escritório. Nunca mais vi, nunca mais senti o seu perfume. Acho que estaria melhor se não tivesse me declarado, ao menos a amiga eu ainda teria. Acabei perdoando a gótica, nos casamos de novo. Raquel? Ah! Não sei, ela sumiu no mundo.

 

Josemar Fonseca
Enviado por Josemar Fonseca em 18/09/2024
Reeditado em 19/09/2024
Código do texto: T8154691
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