O QUE SE ESCONDE NAS CINZAS DO BRASIL?

 

Moacir José Sales Medrado[1]

 

A fumaça que cobre o céu de boa parte do Brasil nas estações secas é muito mais densa do que a que vemos. Ela não só apaga o azul e deixa um rastro de destruição, mas também levanta uma névoa espessa de questões que vão além do fogo. Por que ardem as matas e pastos do nosso país? O que está por trás dessa chama que parece cada vez mais difícil de apagar?

 

Quando observamos o mapa de queimadas, a concentração de incêndios no Brasil segue um padrão claro: a faixa central do país, que inclui estados como Acre, Rondônia, Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Mato Grosso do Sul, é onde o fogo mais se propaga. Uma explicação técnica para essa distribuição está na presença do bioma Cerrado, cuja vegetação altamente inflamável, composta por gramíneas secas e arbustos, está naturalmente adaptada ao fogo. Somado a isso, a intensa atividade agropecuária e florestal nessas áreas aumenta a suscetibilidade aos incêndios, principalmente durante a estação seca. O mesmo ocorre em São Paulo e Minas Gerais, onde também há uma forte concentração de áreas agrícolas e pecuáriaS, além de regiões de Cerrado, que facilitam a propagação do fogo.

 

Além disso, o Brasil é um dos países com a maior incidência de raios no mundo, um fator que também precisa ser considerado ao discutirmos as causas naturais dos incêndios. Entre as 10 cidades da América do Sul com maior número de raios que atingem o solo, quatro estão em território brasileiro: Campo Grande (MS), Porto Nacional (TO), Belém (PA) e Juiz de Fora (MG). O impacto dos raios como fonte de ignição natural é frequentemente subestimado, mas pode ser um elemento significativo em áreas de alta ocorrência, especialmente quando coincide com períodos de seca.

 

As áreas protegidas e as terras indígenas, por outro lado, estão entre as mais atingidas pelos incêndios. O fogo, nesses casos, não raro se torna uma ferramenta de pressão em disputas fundiárias, seja para abrir espaço para a agricultura ou para desafiar a fiscalização em áreas de preservação. Não é coincidência que muitas dessas queimadas ocorrem justamente nas fronteiras entre áreas de proteção e áreas de uso econômico.

 

A discussão ambiental no Brasil é inseparável da política. Durante anos, governos estaduais e federaIs moldaram a forma como nossas terras são geridas e protegidas. Mudanças nas leis ambientais, enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e incentivos a uma expansão econômica agressiva colocam o meio ambiente em uma posição vulnerável. Mas vale ressaltar que, muitas vezes, não se trata de uma oposição direta entre progresso e preservação. Existem modelos de produção agrícola e florestal que respeitam a sustentabilidade, conciliando as necessidades econômicas com a proteção dos recursos naturais.

 

Nas regiões onde a política se polariza, o fogo às vezes pode ser visto como um símbolo de resistência. Para alguns, a fiscalização ambiental excessiva é vista como uma barreira ao desenvolvimento. Para outros, a preservação é essencial para o futuro do país. E assim, em meio a essa polarização, as chamas continuam a consumir tanto as terras quanto o diálogo entre esses dois extremos. Nesse sentido, um interessante aspecto tem sido negligenciado: a falta de cruzamento de dados por parte do jornalismo ambiental e político. Não tenho notícia de que nenhum jornalista tenha realizado ou mesmo sugerido um estudo detalhado que correlacione os municípios com maior concentração de pontos de incêndio e sua dominância política. Em um país de dimensões continentais, onde os incêndios não ocorrem de forma aleatória, esse cruzamento de informações seria essencial para entender melhor os focos de fogo e suas possíveis causas.

 

Será que o fogo, tanto literal quanto figurativo, precisa continuar ardendo entre o que parece ser uma escolha impossível entre desenvolvimento e preservação? Talvez não. Talvez seja hora de pensarmos em soluções que conciliem os dois, respeitando a importância da produção agropecuária e florestal, mas sem queimar as pontes com o futuro.

 


[1]  Moacir José Sales Medrado. Engenheiro Agrônomo (UFCE), Especialista em Planejamento Agrícola (SUDAM/SEPLAN – Ministério da Agricultura), Pesquisador Sênior em Sistemas Agroflorestais (EMBRAPA – aposentado), Doutor em Agricultura (ESALQ/USP)