Eu não sou cachorro, não!
É com admiração e alegria que escrevo sobre Waldick Soriano. Não só por ele ter sido um exemplo de determinação, vencendo uma infância pobre no interior da Bahia e se tornando um dos mais emblemáticos artistas brasileiros, mas, e sobretudo, pela sua personalidade. Com seu estilo ‘mexicanizado’, usando sempre terno preto, chapéu tipo ‘cowboy’ e óculos escuros, ele insistia no romantismo e dizia que só queria cantar e chegar à alma do povo através de suas canções.
Fiquei impressionado quando o vi pela primeira vez, na cerimônia de casamento de minha prima, em Salvador, no início da década de 70, época em que já fazia muito sucesso, principalmente no eixo Rio-São Paulo. Waldick roubou a cena ao entrar na igreja. Foi a estrela da noite. Nos cumprimentos aos noivos, sempre ao lado dela, parecia o pai da moça, o anfitrião da festa. Com um sorriso aparafusado no rosto, ele pacientemente beijava e abraçava os convidados. Seu timbre de voz nasalado era imponente, marcante, a gente tinha a impressão de que a qualquer momento ele começaria a cantar. Foi mais fotografado do que a noiva, inclusive pelas lentes da minha memória.
Eurípedes Waldick Soriano foi o Dom Quixote da trova, desafiava os ventos da falta de recursos e oportunidades e saía de Caetité, no interior da Bahia, onde nasceu e trabalhou como engraxate, no lombo de um cavalo para levar o consolo e a alegria de suas músicas aos corações dos moradores de lugares distantes.
Waldick cantava o amor, falava de traição, o mel e o fel das paixões, e buscava inspiração nos bares, prostíbulos e cabarés. Suas mensagens quase sempre tratavam de amores não correspondidos. Talvez por isso gostasse tanto de usar paletó preto, como se estivesse de luto por algum amor perdido.
Dos seus grandes sucessos o que mais causou rebuliço foi “Eu Não Sou Cachorro, Não”, uma bonita canção que fala de uma paixão incompreendida. Por conta da espontaneidade do título, a música foi perversamente rotulada pela serpente peçonhenta do preconceito como ‘brega’, ‘cafona’, ‘de mau gosto’. Waldick captou uma expressão comum, popular, para dar nome à música e com ela dialogar com o povo simples, mas pagou caro por isso. O rótulo pegou. Sua obra, apesar de valiosa, ficaria marcada pelo veneno da intolerância.
Seu jeito romântico, meio cafajeste até, e a força de suas letras invadiram o Rio de Janeiro, a ‘Beverly Hills’ brasileira, e seduziram a socialite Beki Klabin, uma das mulheres mais ricas do Brasil à época. O tórrido romance entre eles caiu como uma bomba na cabeça dos vira-latas da mídia elitista. Apaixonada, Beki chegou a promover um show de Waldick na Flag, uma das mais badaladas boates cariocas. O jornalista Sergio Bitencourt registrou em sua coluna no jornal O Globo do dia seguinte: “Foi uma loucura. Não dava nem para periquito voar. De repente virou histeria. Gente que, sinceramente, eu nunca pensei, entregou-se.” A higt society da Cidade Maravilhosa se perguntava: Onde erramos? Sem querer Waldick se vingou.
Waldick Soriano teve muitas mulheres, mas somente uma esposa. Teve filhos, dentro e fora do casamento, mas reconheceu, registrou e amparou todos. Não se tem notícia de uma ação sequer de reconhecimento de paternidade movida contra ele. Morreu em 04 de setembro de 2008, aos 75 anos, deixando como herança um estilo peculiar e centenas de composições.
Ainda que canções belíssimas como “Torturas de Amor” – “[Hoje que a noite está calma e que a minh’alma esperava por ti], hipocritamente censurada pelo regime militar em 74 por usar a palavra ‘tortura’, ou “Paixão de um Homem” [“Amigo/ por favor leve essa carta e entregue àquela ingrata e diga como estou”] pareçam insuficientes para mudar a mentalidade da grande mídia que insiste em menosprezar a obra de Waldick, suas músicas e seu estilo continuarão cravados na história da música popular e presentes na memória do povo brasileiro e da minha.