Futuro desamparado na lente de uma jornalista
Enquanto o bramido do mar azul interrompia o silêncio da praia Morena, o verdadeiro ex-líbris de Benguela, na lente de uma câmara de uma jornalista matutina e altruísta surgiria, pouco depois, a imagem desoladora de crianças desamparadas por uma paternidade irresponsavelmente em fuga.
E é aqui, na textura fina dos areais da alegre praia, onde as ondas se desenrolam num vaivém rítmico como o ponteiro do relógio, que começa a triste história de duas crianças. Mesmo assim, elas abraçam-se tenuemente uma à outra como forma de anestesiar a alma que chora por esta dolorosa saudade de um pai desumanizado, inconsequente e sem nenhuma dose de amor.
Mas sucede que estas não são aquelas crianças com makeup nas telinhas do nosso Pimpão. Pelo contrário. São crianças a quem a epidemia nacional da fuga à paternidade, em conluio com a impunidade, aninhada na aparente letargia dos doutores da lei em dirimir tais casos e outros acasos, se lhes continua a roubar desde tenra idade o sorriso e a alegria, e, consequentemente, a esperança de um futuro. Aliás , este anda há muito adiado para dia de São Nunca.
Foi assim que mal viram o flash da câmara da jornalista afável e atenta a tudo o que se mexia no prolongamento do calçadão da Morena, no meio de uma manhã de Agosto, mês com muitos gostos e desgostos da vida, essas crianças resolveram parar sua madrinha circunstancial e mandar um forte recado para todos nós. Bravo!
Nesses instantes uma delas, sem se render à timidez que as acabrunhava ante a magia do flash, denunciaria o que já todo o mundo está cansado de saber, graças às estatísticas assustadoras do INAC, embora a maioria de nós olhe de lado: os contornos cada vez mais alarmantes da fuga à paternidade em Angola.
Essa criança, num gesto de heroísmo, que merece aplausos, dá voz a todas as crianças angolanas que sofrem diariamente com o flagelo da evasão à paternidade, aqui e acolá. De Cabinda ao Cunene ou do Lobito ao Luau. Eis a razão porque as ruas das nossas belas cidades se tornaram em um abrigo de "sem-abrigos". Como se já não bastasse os passeios e jardins reféns da venda desordenada.
Não será um conto de fadas reiterar que a maldição da fome anda nua e crua pelas nossas ruas. Nelas, o exército de crianças abandonadas - que poderiam e deveriam estar numa escola ou à volta da fogueira como os meninos do Huambo- estão sujeitas à mendicidade, à delinquência, ao tráfico de seres humanos e a outros males hediondos. Basta espreitar os dados do INAC, se dúvidas houver.
Com uma tez clara e sorriso meio envergonhado, sempre amparado no abraço fraterno de seu amigo, um dos rapazes reivindicou seu direito. Embora fosse seu direito, não exigira jamais educação, saúde, lazer, habitação, protecção ou cidadania.
Apenas pediu que a jornalista o fotografasse ali na Morena e, de seguida, fizesse circular sua imagem, para que seu pai, onde estiver, o possa ver:
-Mana, me tira uma foto e envia só no meu pai! - clamou o kandengue, com aquela expressão de expectativa em seu rosto.
Fazendo jus às suas virtudes, a jornalista respondeu e correspondeu ao pedido do pobre rapaz:
- Moras aonde? - perguntara, enquanto segurava a câmara em jeito de consentimento.
- Aqui, na praia Morena- respondeu ele
-Quem é o teu pai? - replicou ela
- vive em Luanda- reclamou o menino
- O nome do teu pai? - indagara a jornalista
- Hein! mana! Também esqueci, só sei que vive em Luanda...- concluiu o menino do casaco cinzento.
O curioso é que entre a irresistível tentação de pedir um pão para confortar seu estômago e o desejo de conhecer seu pai, aquele rapaz preferiu a segunda opção. Bravo!
Sem sombras de dúvidas, a história desse rapaz que, a esta altura, pernoita numa cama de papelão improvisada na areia, resistindo ao frio de ranger os dentes que vem do mar infinito, é apenas a ponta do iceberg da crise da fuga à paternidade em Angola, uma batata quente nas mãos das autoridades.
Agora, já só faltam os doutores de "no que tange" tirarem da gaveta os 11 Compromissos para com a criança. Não esperando, porém , que "São Bento" derrame outras milagrosas lágrimas pelo desamparo do futuro do País: as crianças.