Raimundo e o Pombo Rosado

Dia 1:

Em todos os dias que passei por esta esquina, desde os tempos do prefeito Fermário — aquele que não organizou a limpeza das ruas e, com sua corrupção, deixou nossa cidade infestado de animais imundos — eu não encontrei paz. Mas hoje é o fim. Pode acreditar em mim.

— Outro discurso, hein, Raimundo? Vai na fé, tô torcendo por você... como seeeeeempre — provoca aquela voz interna, carregada de sarcasmo.

O mundo lá fora, porém, permanece mergulhado num silêncio profundo. Nem os galos ousam cantar neste horário. São 5h40. Raimundo já está em sua posição habitual, na esquina da padaria, pronto para mais uma emboscada do Pombo Rosado.

Ele aperta a alça da mochila rosa com firmeza, ativa seu modo “concentração máxima” e vasculha os fios dos postes com olhos de águia. Não vê sinal do pombo. Inspira fundo, na esperança de perceber algum odor mais pútrido — mas só sente o aroma acolhedor de pão fresco e café recém-passado.

Confiando que o céu está limpo, ele ignora a banca de jornal — um erro fatal. Num voo rasante e preciso, o pombo desce sobre sua cabeça, arrancando-lhe a peruca e deixando-a nas patas sujas de lixo artesanal.

— Eu realmente estava torcendo por você, Rai...

— Cala a boca.

Derrotado, mas não surpreendido, Raimundo retira da mochila seu boné branco — brinde de um evento do programa “Idosos Bem Cuidados”. Coloca-o com dignidade e retoma o passo largo, rumo à estação. Mais um dia de trabalho que começa com a mesma derrota.

Mas, para ele, um guerreiro, a batalha pode até ter sido perdida — mas a guerra, essa, continua.

Dia 2:

— Mais uma vez, hoje, nesse dia maravilhoso...

— Pode parar com essa palhaçada?

— Como é que é?

— Todo dia essa mesma lenga-lenga. Já fez tanto discurso que nem cabe mais promessa aqui dentro Parte logo pro ataque e para de enrolar.

— Eita, que esquisito... Mas lá vou eu, para mais um dia de guerra... Espera aí! Quem decide se vou discursar ou não, sou eu! Quem é você pra tentar me oprimir?

— Eu sou a sua versão que já tá CANSADA dessa guerra estúpida com um animal. Não tem mais o que fazer, não, Raimundo? Assistir um filme, uma novela... Tem coisa melhor do que ficar sonhando com o impossível. Já faz mais de dois meses que estamos nessa, e nunca — NUNCA — vencemos uma.

— MAS HOJE É O DIA...

— Ontem também foi. Anteontem, terça, segunda, sexta... Qual é, Raimuuundo? Desiste logo cara.

— JAMAIS...

— Então pelo menos faz em silêncio. Porque quem vai pôr a mão na massa na hora do trabalho sou eu, e não você. Preciso de tempo pra me preparar, sabia?

— Mas... ok. Você venceu essa. Lá vou eu, dessa vez, sem discurso.

Raimundo, determinado, se concentra. Ativa os olhos de águia para se orientar: olha a banca de jornal — o mesmo erro não será cometido; olha o letreiro da padaria — nada; vasculha os fios do poste — ainda nada. Só falta um lugar...

E aí vem ele. Do alto.

O pombo ataca de cima, defecando bem no boné branco do Raimundo.

— Ah, Raimundo... O lugar mais óbvio você deixou por último. Pombo voa, né?

— Cala a boca.

Raimundo, enfurecido, tira o boné. Mas para surpresa do pombo, Raimundo é um homem prevenido. A peruca de ontem ficou no passado — hoje ele veio com uma nova, mais firme, mais fiel ao seu antigo retrato.

Os dois se encaram.

— Eu volto, pombo enjoado. E terei minha vingança, meu poder... e de volta, minha HONRA.

— Aaaaaah, por que eu tenho que ser o infeliz a passar por issoooo? — grita a voz na mente do Raimundo.

— Vamos trocar, Raimundo! Cansei dessa sua lenga-lenga! Se soubesse que ia pegar serviço cedo, tinha pedido demissão de mim mesmo. Você me paga, Raimundo...

Dia 3:

— O céu está limpo, Raimundo. Vai que você consegue...

— Que esquisito... Ontem tava reclamando, e agora tá do meu lado?

— Ô, me estranha não Raimundo. Eu sou você. Como é que eu não estaria do seu lado?

— Então vamos ao discurso.

— Calma lá. Tô do seu lado, mas... com ressalvas, né? É que eu não quero trabalhar desde cedo. Preciso descansar. Então termina isso logo e vamos pra estação.

— Você não muda... Rubens.

Mais uma vez, Raimundo embarca na sua jornada matinal. Ativa seus olhos de águia, firme no propósito de derrotar seu maior inimigo: o Pombo Rosado.

Hoje está ainda mais preparado — sem boné, apenas com a nova peruca recém-comprada, colada com fé e determinação. Pronto para mais uma batalha.

Concentrado, ele inspeciona os mesmos pontos de sempre: letreiro da padaria, céu, banca de jornal, fios dos postes... e nada. Nada. Em lugar nenhum, não há sinal.

Ele respira fundo.

— Espera... Nada? Como assim, Raimundo?

— Ele tá escondido, eu vou encontra-lo.

— Raimundo seu tapado, ele não tá escondido. Ele não tá aqui. Acorda, meu chapa... Aquele pombo danado também tem horário! Hoje é SÁBADO!

Raimundo, confuso, olha o relógio. Não sente o cheiro do pão da padaria cedo, nem de café, nem mesmo os sons de panelas.

Olha de novo. De novo. De novo. E o sol aparece — como o único que realmente tem compromisso com o horário no sábado de manhã.

Raimundo volta devagar, percebendo que estava tão entretido na guerra que... errou o dia de voltar pro trabalho.

— Tá vendo Raimundo? Já tá parecendo é um louco mesmo. Quem é que sai de casa às 5h40 pra se encontrar com um pombo besta, só você...

— Cala a boca.

— Ahhh... Como é que eu ainda tô aqui? Que vida infeliz, Meu Deus....

Dia 4:

— As pessoas são inquietas, inseguras... Elas não sabem que a confiança brota na paciência. Assim como Jó..

— Aram... Raimundo, já percebeu que esse discursinho todo é só pra mim? Você nem abre a boca, só pensa. Isso é injusto, sabia?

— Você teve o domingo todo pra descansar. Do que tá reclamando?

— Ah, Raimundo... Hoje é segunda. Não é dia de animação, não. Hoje é dia de chegar no estacionamento rezando sexta-feira, se liga.

— Eu o vi.

— Onde? ONDE?

— Bem ali, ó. No letreiro.

— Ah, que danado! Vai lá, Raimundo. Hoje ele não escapa!

Raimundo já sabe onde está o Pombo Rosado. Agora preparado, observa de longe, dá passos silenciosos, lentos... Não tira os olhos nem por um segundo.

— O pombo não terá escapatória dessa vez! — Rubens se anima, acreditando com fé no impossível.

— Hoje é o dia. HOJE É O DIA.

De repente, Dona Maria abre a porta da padaria com um sorriso gigante, coberto pela máscara descartável.

— É mesmo, Raimundo. Hoje é dia de limpeza da padaria. Cadê o pombo? Cadê?

— Ele sumiu...

— Quem sumiu? — pergunta Maria.

— Aquele danado do pombo que você espantou, sua... arrrr...

— Ninguém — responde Raimundo, se recompondo e aquietando o Rubens.

— Ahhh, bom. Bom dia!

— Bom dia...

— DANADO! ELE SABIA! ELE SABIAAAA!

— Se acalma, Rubens. Se acalma...

— Você só tá assim porque é a Maria. Se fosse a Jéssica, teria dado um xingo atrás do outro!

— Eu aceito a derrota. Mas a guerra ainda está de pé.

Indignado, mas convencido de que não acabou, Raimundo segue o caminho e adentra a estação.

Rubens, sem perder o drama, comenta:

— Que história é essa daí? Vai acabar assim, é? Quem te viu e quem te vê, hein, Raimundão...

E começa a cantarolar, provocando:

— O que o amor não faz, perdoa...

— CALA A BOCA.

— Ele tá de volta! Hahaha!

Dia 5:

— O vento tá mais forte...

— Pior que tá, hein? Esse casaco não vai dar conta...

— Cala a boca, tô discursando aqui.

— De novo?! Ahhh... Faz isso não, cara. Dia de frio assim, nem pombo se arrisca.

— Não o Pombo Rosado. Aquele danado tem garra.

— É claro que tem. Ele é um pombo, seu besta. Pensa antes de falar, Raimundo.

— Você me entendeu...

Raimundo se prepara. Olhos de águia, mochila firme nas costas. Vasculha cada esquina, em busca de um brilho rosado entre as sombras da manhã.

Nada.

Até que ouve — o som abafado de asas. Agitação contida, como se um pássaro estivesse preso.

Ele vira a esquina e vê.

O Pombo Rosado.

Com medo.

Preso numa gaiola no fundo de uma van branca, portas destrancadas, pombas ao redor num pânico silencioso. Na lateral da van, um letreiro barato:

CONTROLE DE ANIMAIS: ou morre ou vira papa.

— AÊÊÊÊ! ELE SE FERROU! Até que enfim! VENCEMOS! — Rubens comemora, festejando como se fosse réveillon.

Mas Raimundo... não.

Fica parado.

O olhar fixo naquela cena absurda: o Pombo Rosado, derrotado... mas não por ele.

Os motoristas, provavelmente na padaria. Porta da van aberta. O momento é agora.

— Meu inimigo está em perigo. Não é certo. Se não for vencido por mim, não aceito que seja por ninguém.

— Que porcaria é essa, Raimundo? O pombo foi preso. Vamos embora, a estação tá logo ali, ohh!

— Vai ser um rapto. Um rápido rapto. Ninguém saberá que ele foi capturado... a não ser que seja por mim.

— Idiota. Raimundo, tu é um idiota.

— Eu tenho uma honra pra zelar. A mesma que esse maldito pombo me roubou... e vou tomá-la de volta numa guerra justa.

Raimundo se aproxima, destranca a gaiola. O pombo olha, confuso. Ele sente paz. Por um segundo: tudo em paz.

Mas nem tudo.

Numa única batida, o Pombo Rosado empurra a gaiola em cima de Raimundo e, como um general libertador, abre caminho para suas companheiras fugirem para o céu.

— Eu disse: você é um idiota.

— Cala a boca...

O barulho chama atenção dos responsáveis.

— O que aconteceu aqui?! — furiosos com a fuga em massa.

— Fala, Raimundo. Fala que um idiota libertou esses pássaros.

— Eu... quer dizer.... na verdade é que eu caí. Me desculpem...

— QUE IDIOTA! SABE QUANTOS DIAS—

— ...sabe, Raimundo... — interrompe Rubens, com um suspiro — eu ainda tô do seu lado. Mas, cara... eu concordo com eles. Você é um idiota.

— Valeu, Rubens.

— Vai pra estação. Ela tá logo ali, ohh.

— Mas eu não desisti. Eu perdi essa batalha... mas essa guerra continua aqui...

Continua até o dia em que eu vencerei... esse Pombo Rosado.

— Vai na fé, tô torcendo por você. Como seeeeempre. — diz Rubens, no mesmo tom sarcástico do começo.

Dedpok
Enviado por Dedpok em 24/04/2025
Reeditado em 24/04/2025
Código do texto: T8316725
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