O Enfermeiro de Plantão

Nossa história começa em um grande hospital público de Salvador, onde o nosso herói atua. Rapaz dedicado, amoroso com os pacientes, alguns já o consideravam parte da família, tamanha a atenção e o profissionalismo com que ele se entregava à missão de cuidar.

Naquela noite em especial, o cenário era digno de filme de ação hospitalar. Além de ser feriado na cidade — e, como manda a tradição baiana, feriado aqui nunca é tranquilo —, o hospital enfrentava mais um desafio: algumas alas estavam interditadas para reforma. Resultado? Equipe reduzida, corredores entupidos de macas e uma fila de espera que parecia a de um show de Ivete no Carnaval.

O caos estava instalado. Tinha gente com pedras nos rins, crise de vesícula, infecção urinária, asma fora de controle... um verdadeiro desfile de sofrimento. E no meio disso tudo, lá estava ele, o nosso enfermeiro, liderando a equipe com quatro técnicos que corriam mais que carro de Fórmula 1 em pit stop. A comunicação? Era feita no grito e na passada, tipo “apliquei dipirona no 32!” seguido de “leva o oxigênio pro 12!”.

Tudo estava (quase) sob controle... se não fosse por um detalhe: o nosso herói estava travando uma guerra silenciosa com o próprio estômago. Alguma coisa no almoço em família tinha feito aliança com o mal. Primeiro veio a pontada. Depois a suadeira. Em seguida, os calafrios. E então, o dilema: correr pro banheiro ou salvar mais uma alma do soro vencido?

Entre a administração de uma medicação e outra, ele sumia. Ninguém sabia se era para buscar uma ficha ou evacuar a alma. A equipe já estava desconfiada, mas ninguém ousava perguntar. Afinal, heróis também têm suas fragilidades. E, naquela noite, o superpoder dele era segurar o plantão... e o resto também.

Entre a administração de uma medicação e outra, ele sumia. Ninguém sabia se era para buscar uma ficha, verificar um leito... ou evacuar a alma. A equipe começava a notar os sumiços cronometrados, mas preferia não comentar.

Pra piorar — ou melhorar a história, depende do ponto de vista — um dos técnicos de enfermagem, o Toninho, era gago. Gente finíssima, ágil, experiente, mas na hora de comunicar alguma urgência, era como tentar ouvir uma rádio fora da frequência.

— O pa-pa-pa-pa… pa… ci-pa-pa… o 17 tá… tá… tá… — e lá se ia o tempo. Ninguém entendia se o paciente do 17 tava passando mal, passando bem ou passando para o além.

No meio do corre-corre, com o intestino dando ordens em código Morse, o enfermeiro-chefe tentava interpretar o Toninho como quem decifra um enigma de esfinge.

— Respira, Toninho! Fala devagar. O 17 tá como?

— Tá pa-pa-páli… pa-páli-do… e-e-e… com o o-o-o-lho vi-viran-do!

— Meu Deus! Corre no 17, que o homem tá se transformando em coruja!

E ele ia, se segurando como podia, apertando o esfíncter como se fosse manivela de emergência. A cada novo surto gástrico, um novo desafio da enfermagem surgia. Era o 22 que desmaiava, o 12 que gritava de dor, o 30 que queria café. E entre um “segura aí!” e outro “tô indo!”, o nosso herói fazia paradas técnicas no banheiro como um piloto faz no box: rápido, preciso, silencioso.

Na sala de repouso, enquanto tentava respirar entre um chá de boldo e uma reza braba, ouviu o rádio da emergência pipocar:

— A-a-a… a mã… mã… mã… mã…

— Toninho, respira de novo!

— A mã… mã… mãquina de oxi-oxi-oxigênio p-p-pifou!

Era o caos completo. Mas ali, naquele campo de guerra hospitalar, entre gases medicinais e gases intestinais, uma certeza reinava: o plantão podia até ser puxado, mas ninguém largava o osso — nem mesmo com o estômago virado do avesso.

Foi nesse ritmo de caos e coragem, suadeira e soro, que a madrugada foi se arrastando. O nosso enfermeiro, agora apelidado carinhosamente pela equipe de “Rivotril Natural” por manter a calma até na hora de correr pro banheiro, seguia firme. Ou pelo menos… sentado.

Mas como todo bom plantão tem seu momento épico, eis que às 6 da manhã, quase na troca de turno, entra no hospital ninguém menos que a supervisora-geral, dona Magali. Conhecida por sua pontualidade britânica e cara de poucos amigos, chegou anunciando em alto e bom som:

— Quero ver como foi esse plantão com equipe reduzida. Onde está o enfermeiro responsável?

Nessa hora, o nosso herói estava, adivinhem… sim, em sua sexta visita relâmpago ao banheiro. Toninho tentou responder:

— E-e-e-ele tá… tá… tááááááá…

— Está o quê, Toninho?

— Tááááááááá… resolvendo um p-p-p-p… problema!

Dona Magali já ia fazer cara de reprovação, quando um dos pacientes da ala da emergência, que vira tudo durante a noite, se antecipou:

— Minha senhora, se tem alguém que segurou esse hospital com tripa, alma e coração, foi ele! Atendeu geral, deu conta do recado e ainda arrumou tempo pra evacuar sem perder a compostura!

Risadas generalizadas tomaram conta da sala. Até dona Magali, que parecia ter sido esculpida por mármore e carência afetiva, não resistiu e deixou escapar um sorriso.

Quando o enfermeiro finalmente saiu do banheiro, recomposto, pálido porém vitorioso, foi recebido com aplausos. Um dos técnicos gritou:

— Aí está ele! O único enfermeiro que venceu um plantão e uma intoxicação alimentar ao mesmo tempo!

E Toninho completou, com esforço e orgulho:

— Um v-v-v-v-v-verdadeiro h-h-h-h-h-h-h-h-h-herói!

E ali, entre risadas, olheiras e braços cruzados de cansaço, o que ficou foi a certeza: trabalhar na saúde é mais que profissão, é resistência com afeto. Mesmo nas situações mais inusitadas, o compromisso com a vida fala mais alto — mesmo quando o intestino tenta falar mais ainda.