Flatulências, bocas abertas e gargalhadas
Sempre que viajamos para Ciudad del Este, no Paraguai, temos a intenção de comprar alguns produtos importados, da China, e adquirir, gratuitamente alegria.
Em todas as crônicas que escrevi sobre esses passeios alterei os nomes e sobrenomes dos personagens. Desta vez será diferente. Colocarei os nomes de batismo ou os apelidos e estarei preparado, caso eles não queiram mais participar dessa festa familiar.
Vamos lá.
No dia anterior à viagem foram preparados lanches com o intuito de economizar. Na subida da Serra do Rio do Rastro, a estrada é apertadíssima e os caminhões, para fazerem as curvas, necessitam realizar difíceis manobras. Em certo ponto, o trânsito estava parado.
Aproveitei, saltei do carro e, disfarçando que iria ver o que havia acontecido, fumei meu primeiro cigarro. Era óleo na pista.
E um caminhoneiro ficou com medo de descer. Outros caminhões pararam e trancaram a única passagem. Depois de insistentes pedidos dos motoristas de carros de passeio, os condutores dos caminhões manobraram e liberaram o tráfego. O Leonardo não contou tempo, acelerou e tocou com vontade, para subir a cadeia de montanhas.
Ouviu berro uníssono dos outros três passageiros: o Aroldo ficou!
Eu corria com meus passos sempre cansados enquanto a turma ria com gosto dentro do carro.
De três em três horas parávamos para esticar as pernas e, se estivéssemos com fome, traçaríamos os sanduíches acompanhados de um bom café. Comprei um litro de suco de butiá que substituiu com louvor a bebida produzida no Brasil graças a Francisco de Melo Palheta, que trouxe a primeira muda de café da Guiana Francesa, clandestinamente.
A Lídia anunciou ter esquecido o lanche em casa, em cima da mesa da cozinha. Nas primeiras três horas, não bateu fome.
Paramos, esticamos as pernas, trocamos de motorista e alguns procuraram não se lembrar de abrir o porta-malas para verificar se estava lá o lanche, pois desconfiavam que ela não havia largado sobre a mesa algo tão necessário e prazeroso, e queria aprontar uma peça. Na segunda parada, depois de abastecermos o carro, nos encostamos sob uma árvore e os mais esfomeados foram no bagageiro e seus olhos brilharam quando viram os comestíveis mais saborosos do planeta.
Em certo momento da viagem, os motoristas mais experientes – eu e o Leonardo – já havíamos cumprido nossa cota ao volante.
Chegou a vez de o Castor executar a tarefa. Ele nunca havia dirigido veículo com câmbio automático. Colocou-se no assento e após minhas primárias instruções preparou-se para fazer um teste.
Com o porta-malas aberto, pois havíamos parado para lanchar, ligou o carro. Não conseguiu acionar o motor. Depois de algumas tentativas mandei o Leonardo bater a porta traseira. Coloquei a chave na ignição e o motor roncou. Comentamos que o carro não ligava com o porta-malas aberto, provavelmente por segurança. Escutei o Leonardo falar: Agora compro um carro desses.
Castor sentou-se novamente e “necas de pitibiriba”. Foi quando descobrimos que, inconscientemente, involuntariamente, automaticamente, eu colocava o pé no freio e por isso o carro aceitava meu comando e não o dele. Acho que por enquanto o Leonardo não adquirirá um desses carros.
Foi nessa viagem que constatei ser o meu sobrinho, o Castor, um terrível pão-duro. Foi distribuído por todos um pacote de bala, que fazia parte do lanche e consequentemente entrou no pacote de despesas. O primeiro a abrir o embrulho foi o Castor. Eu, a Lídia e o Leonardo pedimos para ele uma guloseima cada. Ele deu e disse que iria cobrar. Pensamos que era brincadeira, mas ele guardou os papéis que serviriam de comprovante de empréstimos. A primeira coisa que fizemos quando abrimos os nossos pacotes foi devolver a bala e então ele colocou no porta lixo os papéis que ainda se encontravam no bolso.
Sua esposa, a Jacinta, já sentindo que ele iria cobrar, não pediu nenhuma para ele.
Castor andava com uma pequena caderneta onde anotava todas as despesas, desde um refrigerante bebido solitariamente graças ao sol escaldante até o celular que adquiriu depois de muita pesquisa de preço, choradeira com vendedores e reclamações. Para azar dele, todos entramos juntos em uma loja de materiais eletrônicos importados. Um vendedor muito simpático e espirituoso atendeu-nos e conseguiu fazer bons negócios. Quando chegou a vez do Castor, foi um suador. O vendedor, que é brasileiro, não desistia. Para relaxar o cliente, pediu permissão e cantou uma música de um personagem que no Brasil faz propaganda de uma farmácia. A adaptação foi só a inserção do nome da loja. Ficou mais ou menos assim:
“Economildo já nasceu de mão fechada
No berçário economizava
Na festinha sempre dava bobeira
De mão fechada não entrava na brincadeira
E na escola não dava nem tchau
Economildo não era normal
E cresceu pedindo desconto
Namorando já dormiu no ponto
Se era goleiro, era só tormento
Mão fechada até no casamento
Até que um dia ele sossegou
Passou em frente da Santa Marta e entrou
Sossega Economildo
Na Santa Marta você vai economizar
Sossega Economildo
Na Santa Marta é fácil economizar. ”
Sob o aplauso de todos, Economildo, digo, Castor, não sei se por vergonha e torcendo para que esquecêssemos o ocorrido, comprou o celular, depois de muito mendigar desconto. Coitado, na viagem de volta só era chamado de Economildo.
Quando passamos a fronteira e os postos policiais mais chatos, nos descontraímos e com a máquina semiprofissional que comprei e com o celular do Leonardo foram tiradas fotografias engraçadas. A Jacinta recostada no ombro do Castor, dormindo de boca aberta.
Pena que não apareceu a baba, mas quem estava acordado jura que viu. A Lídia, quando o silêncio era completo, também dormia com a boca escancarada. O pior foi que o Leonardo me fotografou com um tampão sobre os olhos. Não fiquei feio no retrato, fiquei ridículo.
Quando estavam acordados, tanto na ida como na frida, aliás, volta, os assuntos eram os mais variados possíveis. Quase sempre as gargalhadas eram soltas com vontade. Só que no retorno, além das conversas, surgiu algo diferente. Os traques soltados pelo Leonardo infestaram o carro. A Jacinta era a que mais reclamava e rapidamente abria a janela. Inadvertidamente eu colocava o cotovelo sobre o abridor da janela. Os outros faziam o mesmo pensando que o ambiente iria catingar. Eu acordava e dizia: Foi sem querer.
Todos comentavam que não sentiram cheiro algum, então eu repetia com um complemento: Foi sem querer que abri a janela. Me desculpem.
Depois de muitas bocas abertas, flatulências e gargalhadas chegamos. Outra vez mais felizes com a viagem do que com as compras.
Aroldo Arão de Medeiros
22/12/2013