HUMILDE SOBERBA
Um dia, pouco tempo depois de quase completar minhas confissões em crônicas, conforme já tenho explicado, me deparei com a realidade inevitável e indesejável da morte. Mesmo crendo que não merecia morrer jovem próximo dos cem, e achando que tinha capacidade mental e até física para me tornar um humano longevo diferente da ralé centenária registrada até então, acabei morrendo.
Não que Machado de Assis mereça reverência, mas dele copio aqui a posição de um defunto autor. Já solicitei, através de um requerimento celestial, a autorização de enviar, via psicografia, essa última crônica para o padre amigo de minha filha Carolina, para que se complete a tarefa que ele me deu de descrever em crônicas os pecados por mim cometidos. E espero que, não podendo dar-me a absolvição pós morte, possa ao menos agora, rezar algumas missas em sufrágio dessa alma, senão a mais pura, ao menos uma das mais destacadas que chegou ao purgatório nas últimas edições da eternidade. E o purgatório, aprendi com Carol em sua catequese que recebi tardiamente, é a certeza do céu. Mas para galgar os círculos superiores da eternidade celestial, preciso purgar minhas faltas nesse inócuo lugar e receber sinceras orações da igreja militante.
Mesmo tendo uma vida materialista, gozando das delícias da vida com uma inclinação ou outra para os chamados pecados capitais, me achava digno de já receber a tal salvação, indo sem parada para as celestiais regiões eternas. Certo de que não prejudiquei ninguém em vida, e que comparado a muitos, era eu homem muito mais digno da recepção de Pedro para o coquetel de boas-vindas do Pai eterno.
Mas enfim, a cá estou eu no purgatório, na condição de padecente. Mas vendo os meus pares, da ultima ceifa da morte, tenho certeza que houve um engano nos despachos de meu passaporte eterno. Posso ter me decaído nos seis pecados que já discorri. Aceito sim, sou pecador, mas soberbo, arrogante? Não me vejo assim. Sempre fui humilde. Embora não tivesse autodomínio em minhas paixões. Sovina às vezes?, sim! Preguiçoso também, um pouco. O melhor no que faz pode se dar a esse luxo. Me faltou continência? Talvez! A lascívia não deixava, sempre fui irresistível. A Ira e Inveja me morderam?, claro, nem Dalai Lama era isento, que dirá eu. Mas se o crivo de meu julgamento foi a soberba, eu não mereceria estar aqui. Estou certo disso e meus atuais pares de círculo eterno me reforçam essa convicção.
A meu lado na fila, vi João Salomão, um reles político, que mal cumprimentava as pessoas, principalmente nos intervalos entre uma campanha e outra. Era um cara prepotente, como pode estarmos no mesmo nível? penso eu com os botões de minha bata eterna. E não é que comigo também encontrei Frade Antônio, um religioso, que pelos anos de vida consagrada era para ser mais conhecedor das sagradas escrituras que eu. Eu conseguia entender mais da bíblia que ele nos poucos anos que me dediquei a sua leitura, forçado é claro por Carolina, que não queria imaginar o pai no andar de baixo da fase existencial pós morte. Frade Antônio era arrogante, um “show frater” em suas missas, pintava de humilde, mas uma humildade que era seu orgulho e vaidade.
E caminhando por esse espaço de expiação, não é que espiei o professor Ludovico. Esse, pela vida que levou e como tratava alunos e seus pares, era para estar fazendo resenha com Lúcifer. Uma pessoa que se achava o sábio dos sábios. Conversava com um vocabulário rebuscado querendo passar a impressão de estudado, conhecedor de ciência e artes. Um mestre em arrogância.
Aqui também encontrei Romão, fazendeiro endinheirado. Tinha do bom e do melhor, e por isso exibia-se e não travava com qualquer um. O dinheiro fê-lo achar-se melhor que as outras pessoas. Sujeito desdenhava sempre que podia, quem com ele conversava. Para exibir-se como superior, diminuía os outros. Por conta de seu status econômico era tratado com distinção, o que só reforçava sua empáfia.
Encontrei também ali em seu padecer sem espelhos, Rosa Narcísia , a mais bela senhora da sociedade onde vivi. Realmente uma mulher belíssima. Convencida que era por tantos elogios devotados e suas próprias convicções egóicas, tinha a arrogância como sua principal característica não estética. Fora corteja a vida toda, e se achava melhor que todas as outras mulheres. Cobrava inclusive, boa quantia em dinheiro, por sua presença em eventos sociais e em algumas propagandas para boutiques mais requintadas. Não tinha muito conteúdo, mas se achava inteligente e bonita. De tanto escolher, acabou a vida só, a admirar-se convencida de ser a mais bela de todo seu pequeno reino fantasioso. No purgatório, buscava ver pelos olhos dos outros seu micro reflexo para saciar seu vício de si mesma. Esse era seu penar soberbo.
Para meu espanto topei com Maroca a me olhar com julgamento. Apontando-me o dedo, disse-me: Você aqui? No mesmo círculo que eu! Nem esperei que falasse mais, fui me afastando. Com certeza espantava-se. Tivemos vidas opostas para cairmos no mesmo balaio. Maroca era presidenta da irmandade do Santo Rosário. Dedicava horas a fio a prática da oração, penitência e da caridade. Garantiu a muitos a salvação da alma, só pelo convívio. A maior apontadora de dedos da paróquia. Um paladino moral, mas uma julgadora de mão cheia de dedos. Falava mais do capeta e suas artimanhas que de outra coisa. Tinha certeza de sua função de guardiã do sagrado, da família e da moral. E aí de quem a contestasse, por mínimo que fosse. Era certa de sua retidão. Uma convencida inquisidora laical.
Recuperado do susto que Maroca me deu, ouço alguém me chamar de cidadão. Quando me viro para olhar de onde vem a amistosa saudação, vejo Sargento Moisés com cara boa a me olhar e seu sorriso “embigodado”, parecendo Leôncio do Pica Pau que meus netos assistiam na TV. Não resiste e perguntei se ele também tinha atravessado o Mar vermelho. No que o mesmo entendeu como um desacato a sua autoridade militar de segurança pública. Era cortês em vida, mas quando, ao mínimo indicio de desacato, ficava presunçoso, arrogante. Se achava a pedra angular da ordem social. Nada superava sua empáfia. E ali, mesmo no ambiente de expiação, não se conteve. Seu orgulho ferido ainda exerceu forte influência sobre seu comportamento, e erguendo o braço, como que empunhado seu cacete ia descer o braço a revidar a ofensa como sempre o fez em vida. Nesse momento, já encolhido esperando ter no purgatório a dor física da brutalidade do oficial, acordei gritando acudido por Carolina. Ao seu lado, o padre das crônicas, com óleo santo pronto a me ungir em meu leito de morte.
Arregalei bem meus olhos esverdeados, os mais belos da família, e disse solenemente: ainda não! Minha hora não chegou, preciso concluir a sétima crônica. O melhor cronista do século não descansará até que sua obra esteja perfeitamente completa, afinal sete é o número da perfeição. Amém?
Gleisson Melo