O que queres de mim?

"Não há uma pegada do meu caminho que não passe pelo caminho do outro."

Simone de Beauvoir

Após horas e horas de uma viagem quase eterna... Chegamos. Cabelos desarrumados, mascando chicletes, roupas amassadas e caras espantadas por uma noite mal dormida. Foi assim que desembarcamos meu filho e eu na Terra do Sol. Minutos depois, desfilando nos corredores, eis-nos com as malas pesadas e cheias no limite do permitido. Em uma delas, o que eu possuía de mais precioso: livros. Eram quatro grandes malas e duas pequenas no total. Nela, estavam agrupados todos eles apertadinhos, usados, cansados... Alguns comprados em feiras, sebos e outros em lojas; alguns foram presentes, mas todos com uma bela história e uma trajetória de esforço e muito choro. Dentro de cada um havia uma impressão, uma marca, um risco, um grifo histórico, uma embalagem de bombom, um cartão postal, uma flor ressequida, um ticket de metrô. Eu diria mesmo, sem exageros, uma parte de mim.

De repente, já pertinho da porta de saída, onde se encontram o livramento, a poluição e o bafo quente da metrópole alencarina, somos parados pela alfândega:

_Abra essa mala, por favor! Disse o bigodudo do aeroporto de Fortaleza.

_Sim, senhor..., mas não tem nada de errado aqui. Qual delas? A do cadeado? A vermelha? Ou as pretas?

_A vermelha, senhora. Ela está fora do padrão e muito cheia. Disse ele com um olhar de capitão do mato.

_Certo. A vermelha. Esta mala está repleta de algo muito valioso, respondi.

_Não interessa o que a senhora diz. Preciso ver o que tem na mala. É o meu trabalho de fiscal. Abra-a, por favor! Desta vez, o tom foi mais grave.

Normal ele ter me parado, pois eu estava com dois carrinhos cheios de malas e acompanhada de uma criança de quase 6 anos que mal podia empurrar o seu de tão pesado que estava. Isso sem contar com as maletas e a bolsa de mão. O fato de o menino ter feito careta e ter reclamado muito, chamou a atenção da alfândega. Devem ter pensado ao nos ver «Vai que esses dois estão trazendo algo ilegal dentro dessas grossas malas». Vindos da França, acredito que ele deva ter pensado que nossas malas estavam cheias de perfumes, bebidas de luxo, queijos, chocolates e outras coisas caras. O fato é que abri a tal mala vermelha, conforme o fiscal havia me pedido:

_Pronto, senhor. Veja que há muitos livros usados.

_Por que a senhora anda com tantos livros assim? Indagou-me espantado, mas com um sorriso desabusado no canto da boca. É a primeira vez que vejo alguém que vem da França com uma biblioteca dentro da mala. A senhora, por acaso, tem mais livros nas outras malas? _Sim, muitos. Respondi de supetão: _cada mala transporta uma coleção ou um tipo de livro. Sou pesquisadora e preciso deles para concluir meus estudos. Há algo de errado em transportar livros, senhor? Sou fora da lei, por aqui? Pagarei impostos? Meus livros valem ouro, mas não tenho meios para pagar impostos, vou logo lhe dizendo! Embora fosse meia verdade, foi a primeira vez que eu mentia para um agente federal sobre a totalidade do conteúdo de malas. Ouvindo meus argumentos, o menino quase deu um grito dizendo ao guarda sobre o conteúdo das outras malas. Mas, olhei para ele e fiz um sinal de reprovação com minhas negras sobrancelhas, tão conhecidas por meus alunos. Ele calou-se, mas depois exigiu um sorvete alegando que estava com calor. Deste modo, ao ouvir meus argumentos, o agente pediu um minuto para ir ao outro lado da porta falar com um colega de trabalho. Nesse momento, fiquei com muito medo de ele pedir reforço para me levar para prisão. Foram minutos eternos... Quando voltou, pediu para eu fechar a mala e, disse-me: É raro vermos malas com tantos livros, mas acredito que seja por uma boa causa, afinal livros aqui custam os olhos da cara. A senhora tem razão em trazê-los da Europa. Queria igualmente ter essa coragem! Pode seguir! Em instantes o frio do medo transformou-se em calor no rosto. Enfim, o coração acelerou, pois logo vi minha família sorrindo no saguão do aeroporto. Era uma nova vida que começava em terras tão quentes!

Cristiane Grandinot
Enviado por Cristiane Grandinot em 15/10/2024
Código do texto: T8174259
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