MORDIDAS DA IRA - Por Gleisson Melo

Para mim era tudo igual, ira, raiva, ódio. Tudo farinha do mesmo saco. Mas só agora que a vida me impôs tratamento para não morrer em pecado nem adoecer mais ainda os que me amam, que fui entender a diferença. Nunca é tarde para aprender, mas tenho uma raiva de não ter aprendido antes.

É terapêutico aprender, aumenta nosso autoconhecimento, autodomínio. Uma experiência de catarse. É o que tem me sustentado, catarse. Aprendi teoricamente ao menos, e por alguns segundos na prática a diferença de ira e raiva. A ira e a raiva são emoções intensas e frequentes, mas a ira possui intencionalidade e direcionalidade. Agora entendo meus planos de estrangular algumas pessoas.

Ela, a ira é um sentimento de raiva extrema ou cólera contra alguém ou algo. É um desejo de vingança e pode ser externalizada. Com socos ou palavras de baixo calão. Ambas externalizações são tão relaxantes. Mas a merda toda se dá nos segundo seguintes, quando o soco volta ou a consciência pudicamente cristã vem me cobrar os talentos. Valha me Deus, queria a ignorância nessas horas.

Voltando as definições, que são uma catarse, a raiva é uma emoção de desprazer que pode ser excessiva ou inapropriada, mas não necessariamente prejudicial, para os outros. Meu estômago, coitado, que o diga, ele sabe bem o que significa ser prejudicial. A raiva é um sentimento de protesto, insegurança, timidez ou frustração, contra alguém ou alguma coisa. A raiva vem primeiro, e se o estímulo que a produz permanece, chega a níveis maiores, se tornando a ira, uma incontrolável ira. “Não colocais o sol sobre a vossa ira”, nos aconselha a Bíblia.

Há também as pequenas raivas, como as frustrações do dia a dia. Inofensivas?! Que nada, são doses homeopáticas inversas. Como tenho muitas, várias, sei bem do que falo. Quando meu bilhete não é sorteado, quando a comida fica salgada, quando o trabalho não fica perfeito, quando não sei dizer não, aff!!!, quando a fila não anda, quando o farol fecha na minha vez de passar, quando a moça bonita senta na poltrona da frente dando lugar para o chato de galochas enorme a me espremer na janela. Enfim, são muitas pequenas frustrações. Raivinhas aqui e acolá que no fim de tão inocentes, se ajuntam com a potência mega ultra de uma ira devastadora.

Mas voltemos a raiva. Ela é um sentimento natural e positivo, vejam só. Como poderia eu saber que quando tinha vontade de morder, isso era positivo. E como tive e ainda tenho vontade de morder. Mas a consciência da fragilidade do “réu primário” sempre me impediu de morder os outros, e acabava mordendo a mim mesmo. Meu bruxismo que o diga, quanta raiva a triturar meus dentes, sem contar minhas mordidas internas. Isso mesmo, mordidas internas. Minha vesícula biliar, sempre mordeu meu fígado. E como dói! Mas aprendi com um Coach, que vi pregando na TV todos os dias no horário nobre. Dizia ele, “a raiva existe para auto defesa. A natureza nos trouxe a raiva para defendermos e lutarmos contra as injustiças da vida, para defender nosso território e proteger quem amamos.” Ouvindo isso me senti o Batman, um justiceiro.

Mas essas experiência não são coisas da vida adulta com boletos, compromissos e relacionamentos tóxicos. Digo isso hoje aos 99 anos. Quase um século a atuar meu karma de estressado, raivoso, Dr Ira. Contam que eu, recém nascido agitava a cabeça, grunhia nervoso pois o leite não vinha farto de mamãe, a saciar a fome. Daí a primeira infância foi cheia de repressão. Nada podia levar nada a boca, se sentava mandavam andar, se andava diziam que ia cair. Na escola, não podia isso, não podia aquilo, menino bom não faz isso. “Deus castiga se fazer aquilo”. “Seu avô era uma bondade, e você isso, respondão, malcriado”, me afirmou com veemência a professora de matemática. Quando jogava bola sempre arrumava uma encrenca. Era até evitado, o último a ser escolhido, isso quando era escolhido para um dos lados. A única vez que cheguei as vias de fato com um colega que conseguiu despertar-me a ira, me disseram que virei um capeta, foi sangue e palavrão dos mais pesados. Ao menos me valeu mais respeito daí em diante na turma. A raiva tem seu lado positivo.

A mocidade não foi diferente, mesmo com os conselhos das pessoas que me amavam, e o livro sagrado a instruir, volta e meia estava eu colocando a ira sobre a ardência do sol. No lado profissional era uma sumidade tecnicamente falando, mas também sumia com atestados psiquiatras. Até ser demitido por bom comportamento quando eu não estava. Virei autônomo. O sonho de trabalhar sem patrão. Ilusão, frustração, as mordidas eram outras e continuaram. Rivotril era minha dose tônica diária. Minha creatina em gotinhas de paz sedada.

Daí o tempo passou, entre batalhas internas e externas me aposentei. Se parei de morder? Que nada, mordia constantemente a imagem da previdência e do presidente. E agora nessa empreitada de confessar meus pecados, abro o jogo como nunca fiz antes. Hoje, mais consciente e com medo do fogo do inferno, fui bem catequizado, diga-se de passagem, leio bem a Bíblia com atenção. Ela me impõe mais dor na consciência pelas minhas iras. Mas também traz alívio. Muitas raivas e iras que tive foi por suportar, pessoas e situações. E Paulo foi claro, “suportai uns aos outros no amor.” Suportar é amar, e amar conta ponto positivo.

Só espero que a ira de Deus não se vire para mim. Ele sabe que era para defender a justiça como me ensinou o Coach. Justiça é virtude, virtudes compensam os vícios e os pecados. Principalmente os capitais. Deus se compadece de um coração contrito, aprendi na catequese, onde ia com raiva. Não queria ir, era bem na hora dos meus programas favoritos. Que raiva!

Gleisson Melo

ESCRITORES E CIA
Enviado por ESCRITORES E CIA em 11/10/2024
Código do texto: T8170946
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