*O Improvisado Dr. Veterinário*
... À época eu era Sargento da PMMG e estava chegando à minha casa. Era um fim de tarde – quase noite – poder-se-ia dizer. A casa onde morava era na realidade um Pensionato onde alguns clientes da D. Adelina tomavam – e dentre eles eu – as costumeiras refeições. Todavia o único que ali habitava, era eu: o xodó da D. Adelina por ser o “quebra galho”, nos seus costumeiros apertos pela falta de dinheiro. O imóvel situava-se na Rua Sergipe, 114 – bairro de Lourdes, e era afastada do passeio numa distância de uns vinte metros, dando ao local uma enorme área, onde uma mangueira se destacava fornecendo frutos e as desejadas sombras que amenizavam o calor escaldante da linda cidade de Governador Valadares – MG.
Manobrando o carro, noto que um gato enorme foge, temendo o ronco da máquina. Não tinha motivo, curiosidade – aquela mesma que matou o gato – sim! A curiosidade levou-me a vasculhar o local de onde o gato havia saído e vejo uma enorme lagartixa – devia ter uns trinta centímetros de comprimento – ferida pelo gato caçador do seu jantar. Tento pegá-la! Numa inútil tentativa – sem conseguir – ela busca fugir. Conseguindo o meu intento, noto que o ferimento era bem maior que o imaginado: a barriguinha da lagartixa, aberta, mostrava o seu intestino tomado por fina areia que abundava no local. Algumas vísceras já estavam para fora! Notei que uma estava com um enorme rasgo.
Vou cuidar desta lagartixa – pensei! O meu pensamento, ao que parece, foi capitado pelo coraçãozinho da lagartixa, fazendo-a entender a minha intenção – que era boa – na tentativa de ajudá-la. Ela se queda. Não oferecia resistência à minha ajuda. Quando os corações se comunicam, não há necessidade de uma voz gritar para ser ouvida. Os sussurros dos corações são audíveis entre si!
Pego-a com carinho sob os introspectivos olhares de curiosidade da D. Adelina a indagar-me:
-Menino, o que você vai fazer com este bicho? – rindo perguntou-me!
-Vou tratar dela e, com certeza, vai ficar curada! – ri ao ver a cara da D. Adelina me julgando ser um louco!
Em um tanque que havia, lavei com um leve jato d’água a aberta barriga da lagartixa, retirando as sujeiras e areia que lá se encontravam. Enxugo-a com uma toalha e – fazendo uso de um esparadrapo – prendo-a numa tábua com a barriguinha para cima. Era uma espécie de crucificação: bracinhos (Lagartixas têm braços? Sei lá!) abertos e presos à tábua (Ops! Mesa de Cirurgia, tá?). Fiz o mesmo com as perninhas dela: prendi-as para melhor imobilizá-la, enquanto recolocava as vísceras para dentro da barriguinha da minha paciente. Terminada esta etapa pré-operatória, peguei uma lata na qual continha xilocaína – anestésico que usei para anestesiar a minha paciente lagartixa! Numa caixa de costuras da D. Adelina peguei agulha e linha para coser a cisão provocada pelo esfaimado felino.
O rasgo era enorme! Não desistindo do meu intento, iniciei o fechamento, final ato do procedimento cirúrgico, fazendo pontos cruzados para conseguir uma melhor aderência para a cicatrização. Sobre os pontos, fiz um curativo para evitar uma possível infecção hospitalar. O suor escorria-me pela testa. Ávido peço: -D. Adelina, enxugue-me a testa! – solicitei àquela que, agora, se tornou a minha enfermeira auxiliar na difícil missão!
A testa, agora enxuta, deu-me condições de terminar o ato cirúrgico da cisão. Retiro os esparadrapos que imobilizavam a minha paciente. Com um pano úmido, limpei o seu corpinho. Em seguida – fazendo uso de um algodão molhado com álcool – higienizei a paciente lagartixa.
-D. Adelina, pegue, por favor, aquela caixa de sapatos no meu quarto e traga-a para mim. – pedia-a!
Na caixa, faço alguns furos para a entrada de ar. Dentro, coloco algumas peças de pano, para servir-lhe de uma confortável caminha. Coloco a minha paciente na palma da mão e acaricio-a, enquanto – fazendo uso da linguagem do coração – lhe dizia: -Você vai ficar boa – vai se curar! (Abro um parêntese para dizer que os ocelos da minha paciente piscaram repetidas vezes numa espécie de agradecimento por tudo que fiz por ela. Acreditem se quiser, mas os animais irracionais são mais gratos por tudo aquilo que por eles fizermos, do que os tidos racionais!)
Fechei a caixa (Ops!) porta da UTI, prendendo-a com esparadrapos e levei-a para o meu quarto. De soslaio, vejo o inquiridor olhar da D. Adelina fazendo as suas – entre risos – críticas:
-Você não tem é o que fazer! – dissera-me sem condições de conter o riso!
Epílogo:
Os dias passam, enquanto me dedicava aos cuidados com a minha lagartixa paciente. A ela eram reservados bons pedaços de carne que, cuidadosamente, colocava na boquinha da minha paciente, enquanto olhava a situação da cicatrização dos ferimentos. Precisava monitorar – e estava em constante monitoramento – o processo de cicatrização. Notei que tudo estava ótimo. Novamente deitei a minha paciente na mesa do Bloco Cirúrgico e iniciei a retirada dos pontos usando uma lâmina de barbear – nunca usada, claro está – para cortar a linha. Alegre, gritei:
-Bingo! Sucesso absoluto! – constatei! Em seguida, retirei os esparadrapos que imobilizavam a minha paciente. Coloquei-a novamente na palma da minha mão, enquanto lhe alisava as costas. Senti que ela gostava, porque os seus ocelos fechavam em deleite. Coloquei-a entre as pedras onde ela residia e lhe disse:
-Vá embora! Mas tome cuidado com o gato esfaimado, viu?
Vejo-a se esgueirando entre as pedras. Sinto – devo confessar – saudades da minha paciente lagartixa. Levanto-me para retirar. Agora, já de pé, inicio a volta para o meu quarto. Algo me diz para volver, volvo cabeça e olhar para o monte de pedras, habitat da minha paciente! O que vejo me deixa boquiaberto. A minha ex-paciente se encontrava sobre uma das maiores pedras. Não estava só. Ao seu lado se encontravam outras lagartixas que, imaginei, faziam parte da sua família. Ainda – e fazendo uso das minhas elucubrações – imaginei que a minha antiga paciente fizera todos os seus familiares aparecerem para agradecer-me – sem necessidade, diga-se – por ter sido o seu Improvisado Dr. Veterinário!
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Imagem: Google