LÁGRIMAS DE UM OLHO GORDO
Dor de cotovelo. Também tenho as minhas. Mas é difícil de admitir. Das dores que a vida me trouxe, exatamente nessa ponta estranha da articulação entre braço e ante braço, foi a que mais escondi ao longo dos meus 99 anos. Reclamei das dores do coração, dos amores não vividos ou dos vividos e seus problemas. Coloquei em palavras para outrem sobre as dores do bolso, do dinheiro curto. Reclamei em alto e bom tom das dores da coluna, das artroses, das enxaquecas, e tantas outras dores, físicas e emocionais.
Mas a dor de cotovelo que tem um nome chique, de origem latina, a inveja, essa escondi melhor que frango desfiado sobre batata cozida e amassada. Invidere, que significa olhar com descontentamento, olhar mal. Ah ... como escondi meus maus olhares!
Santa inveja, inveja branca, quantos eufemismos para esconder esse sentimento socialmente pouco admitido. Não é bom nem é simples admitir-se um invejoso. “Coisa feia!”, sempre ouvi. “Isso não é cristão”. Somos todos invejados, mas nunca invejadores. Pode isso? Reprimido pela cultura, engoli seco todas as minhas invejas, fiz regime no olhar para que meu olho nunca parecesse gordo. Mas confesso sem acanho, a velhice nos permite isso, invejei muito. Senti muitas vezes na convivência social o ácido interno a corroer-me o plexo solar e as paredes do estômago. A dar desentonação à minha voz com boca mucha num elogio nada sincero, na tentativa vã de me enganar com relação ao sentimento feio.
Não não não!!! Não sou invejoso, as pessoas que possivelmente me invejam! Quanta ilusão. Basta ver alguém se destacar, ter um carro novo, um emprego de destaque, um casa bacana, ver o outro viajar para Ilhas Canárias, ver seu amigo de infância numa BMW buzinando contente para você, e esses situações comuns do dia-a-dia despertam a dor. Isso mesmo, dor. Inveja é dor. A dor pelo sucesso que não te pertence, a dor pelo objeto de desejo em uso e gozo do outro. A dor pelo teu igual, que não é mais igual pois tem o que você gostaria de ter ou está onde você gostaria de estar. Sim dor, das mais doídas e das menos admitidas.
Mas, como todo comum mortal, duas coisas temos em comum. Nós os invejosos. Primeiro, sempre invejaremos quem constatamos que está acima. Acima no cargo, no volume bancário, na casa melhor, nas férias mais glamorosa, enfim, invejaremos quem está por cima. Jamais invejamos os andares de baixo. Eles têm outras funções, reforçam nossa empáfia. Nossa vã ideia de superioridade, deles esperamos a inveja, o olho gordo, rindo da ideia mítica, popular.
Segundo coisa, que nos iguala na inveja. Como a dor costuma ser grande para quem a sente e proporcional a cada subjetividade, o invejoso alivia a dor com frases ou suspiros que no popular diríamos, está com as canelas a coçar. Sim frasezinhas como “É dinheiro ilícito”. Está saindo com homem ou mulher rica.” “Aposto que não tem paz.” “Para que isso!?, quando morrermos tudo ficará aí.” “Caixão não tem gavetas.” “Se eu tivesse a mesma oportunidade também conseguiria” “Ele tem padrinho.” “Fulano tem muita sorte”.
Ao fim dessas minhas crônicas confissões de olho gordo, e crendo também que já caminhado para o fim de meu tempo a invejar terrestre, chego a conclusão que viver é desejar. Mas queria eu ter o nível da santidade dos muitos santos autodeclarados de poder olhar e sentir apenas uma inveja santa, ou branca sem querer ser preconceituoso. Minha inveja tinha várias cores, e não consegui me conter, não que tenha prejudicado alguém com minhas invejas, não, não, isso nunca, isso é coisa de invejoso.
Invejei sim, mas senti sozinho minha dor, mas quereria ter aprendido a mudar o olhar, desviar o foco, elogiar mais com elogio de voz rompante, de voz sincera, a regozijar-me com o outro em suas conquistas. Quereria ter aprendido a evitar a mordida voraz da inveja. Mas agora, que me resta a não ser confessar minhas misérias. Só peço a família que no velório garantam minha exclusividade na capela, temo invejar a urna alheia e assim não merecer o céu. Mas quem nunca tiver invejado que tire a primeira lente que tampa seu olho gordo. Falei conclusivamente ao padre que me ungia com seu polegar oleado com o óleo santo. Nisso notei como era belo o Rolex em seu braço.