AVAREZA MINHA, SÓ MINHA!
Se teve uma coisa que aprendi menino, essa coisa era ter medo do fogo do inferno. A catequista vinha com uma historinha de que tínhamos uma balança a tipo o ícone da justiça, com os seus pratos a pesar para o lado do bem praticado ou da maldade delinquentemente cumprida. Ao final da vida, para o tal juízo primário, olharia Deus Pai, o Justo, para qual lado da balança estaria mais pendendo nossas obras, e assim sem mais delongas nos daria a sentença cavada por nós mesmos. Uma comédia nada engraçada para a cabeça de um menino.
Tinha lá nesses tempos de decoreba de lição de catecismo, “És cristão? Sim sou Cristão pela graça de Deus!”, uns vizinhos ricos. Ricos na minha cabeça, faziam churrasco sempre, comiam carne todo dia e tinham carro na garagem. A mesa deles era farta de coisas boas de comer, que alguns partilhavam e outros nem tanto. Tinha nesse tempo, entre meus vizinhos, um garoto de minha idade, Caique. Um companheirão para todas as horas de peraltice infantil e deveres escolares. Na casa dele todo fim de semana tinha um amontado de gente estranha bebendo cerveja e falando alto. Comiam bem e partilhavam também. Sentia gratidão por isso.
Um dia, um primo paulista, me deu lá um ticket, dos que ele tinha em um bloquinho. Comprava-se as coisas com eles, como se fosse dinheiro. Fui no mercado e me esbaldei. Era bolacha recheada, salgadinho, chocolate, Mirabel, Toddy e mais uma porção de coisas que deram o valor cheio do ticket. Cheguei em casa e convoquei Caíque, meu amigo generoso, e outros nem tanto assim, para uma banquetança infantil. Minha mãe, acostumada a parcimônia que a vida a obrigou, confiscou minha cesta nada básica e regrou a divisão. Sua frase de sabedoria e profecia de mãe, explicou: “Guarda para ter mais em outras horas”. Minha mais remota lembrança de avareza, que nem era avareza, era parcimônia. Mas o menino entendeu isso?
"Segura para ter!" A vó do meu amigo Diovany afirmava em vida, "se tenho alguma coisa, é porque economizei". Tia Marta reformou sua casa com o dinheirinho da pensão do Titatão. Dois cruzeiros por mês juntados com disciplina e sacrifício anos a fio.
Daí vi e num vi, tornei a ver. Na igreja, local próprio de se falar em pecado, como coroinha, recolhia a oferta das missas, ou dos cofrinhos dos santos. Tinha lá doações parcimônicas e avaras, moedinha contada com cara boa no depositar. Há quem creia na ideia de que a pobreza é bem quista por Deus. Os santos são simples, pobres e obedientes. Não precisam de dinheiro para ser feliz. Seriam os fiéis doadores, avaros ou aspirantes a santidade?
Tinha lá eu, nesse tempo, um programa dominical de confrade mirim. Com uma sacola de pano azul marinho e as iniciais SSVP de vermelho bordadas, saía de casa em casa, numa parte da cidade, antecipadamente dividia entre as confrarias locais, a pedir esmolas para os pobres em nome de Vicente de Paulo. Vinha muita moedinha, raramente uma nota, vinha até ovos na falta da pecúnia. Mas o que marcou minha memória de elefante, eram as mãos vazias, enfiadas na sacolinha de pano só representando o gesto de doar. Avareza? Talvez!, mas poderiam ser mais pobres que os assistidos da sacolinha azul.
Em meu trajeto de pedinte de esmolas para os pobres, tinha uma casa, que eu sempre pulava. Era muito simples e minha cabeça deduziu: é muito pobre. Não deve ter nem para si, quanto mais para ajudar outros. Foram muitos domingos saltando essa casinha.
Um dia contei ao papai sobre ter dó de pedir ali, na casinha pobre. Papai falou: “É unha de fome, seguro demais, é aposentado, tem dinheiro”. Avaro? Sei lá! Não perdoei mais, batia à porta e pedia: esmola pra São Vicente!" Mas havia domingos, que era só um ovo doado, e em outros, as mãos vazias enfiadas na sacola azul.
"Avareza, avareza, não é comigo, isso é coisa da Tereza." Certa vez Reginho, confrade mirim e companheiro de um domingo esmolar, pediu doação numa farmácia que estava aberta. O farmacêutico só abanou a cabeça negativamente com cara de poucos amigos. Reginho balbuciou alguma praga: “Avaro de uma ..., tomara...” Já não basta nossos pecados? Não deseje coisas ruim para os outros Reginho!”, solicitei pudicamente ao colega.
Avareza gera castigo? Ou a avareza já é o castigo? Domingo seguinte, estava lá o farmacêutico com cara de poucos amigos andando de muletas. A razão para tal, poderia ter tido uma infinidade de possibilidades, mas na minha cabeça, fora a praga do Reginho, ou seria uma amostra grátis das sentenças de Deus Pai, Justo Juiz? Recolhi meus pensamentos no santo temor.
Tinha uma casa bonita no meu trajeto, onde eu também entrava a esmolar, com certa timidez e receio. Casas chique. Era de gente graúda, com carro novo na garagem, num tempo que poucos tinham carro, mesmo velhos. Ele sempre dava sua oferta. Duas moedinhas, bem miúdas, pititinhas. Uma era dele, e a outra da filha, que morava algumas casas a frente. Ele doava dupla-avaramente. Hoje penso sem pudor, na época o pensamento consciente era castrado pela mente pudica: “antes pouco que nada”. Há quem nem dê! Mas no fundo, em meu coração de "bom menino", sabia era avareza pura mesmo.
Mas entre avaros e mesquinhos, sovinas e mãos de vaca, nada me tira da cabeça a disputa entre João Romão e o velho Libório no cortiço "São Romão" que estava em chamas. O avarento Libório juntou por anos a fio, fruto de seu esmolar, uma boa quantia em dinheiro que mantinha guardado com muito zelo. João dono do cortiço que já namorava o tesouro do inquilino fazia tempo, ganhou a disputa do colchão cheio de dinheiro, uma vez que o teto em chamas impediu o velho Libório de salvar seu tesouro. Mas a sovinice de João Romão exasperou mesmo, foi quando amaldiçoou o Libório por deixar prescreve a boa soma de quinze contos e quatrocentos mil réis. Maldita avareza, que faz escorrer entre os dedos o apego da alma.
Entre projeções e percepções, também tenho minhas avarezas, meus apegos a papeis, livros, prego torto, parafusos, botões velhos, infinitos cacarecos e moedas na velha carteira. Sem contar minhas avarezas com meus próprios desejos: um pedaço de pudim adiado, um compra guiada pelo mais barato, a fome tolerada esperando chegar em casa. A festa não feita, o almoço não prometido. E tantas outras coisas que cocharão um belo “camelo” para não passar no fundo de minha agulha.
E ao final dessa existência terrena, se a avareza me deixar prestes a condenação, lembrarei do bom e velho ditado do meu Avô Licurgo: “caixão não tem gavetas” Então vou me desapegar, pedirei perdão e liberarei o colchão, minhas moedinhas, meus cacarecos e liberarei minha vida terrena para entrar de alma leve no céu onde a dor e a avareza não serão necessários. Ali tocarei minha harpinha pela eternidade. Minha harpinha, só minha, deixo claro!