PURA FICÇÃO

Embora de gerações diferentes, Tiago e Praxedes* coincidem em numerosos assuntos. Concordam, por exemplo, com a avaliação de seu amigo Mourão, o Pensador do Boteco*, de que o Brasil não é uma realidade, mas pura ficção.

Essa avaliação, mais um achado fenomenal do Pensador, está longe de ser fruto de simples noitada entre amigos inebriados pelo chope. Não senhor! Resultou de várias noites de estudos aprofundados e trocas de informações sustentadas em farto material de pesquisa, disponível no meio acadêmico de maior excelência na cidade do Rio de Janeiro: a mesa do bar-restaurante favorito de Mourão e seus seguidores. Foi necessário processar muitos comes e bebes, de maneira metódica, para chegar-se à conclusão de irretocável conteúdo científico.

A circunstância de tratar-se de um país de ficção permite entender e explicar a notória dificuldade de tantos analistas, nacionais e estrangeiros, em oferecer interpretações da (suposta) realidade brasileira que não sejam prontamente objeto de contestação ou de desmentido.

A economia começa a caminhar bem, a dar sinais alentadores de ingressar num círculo virtuoso, para logo a seguir entrar em crise. Líderes emergem e submergem ao sabor das aparentes alternâncias de humor da população, mesmo se alguns logrem continuar a enganar seus apoiadores por bom tempo.

Um cientista social, um diplomata ou um jornalista esforça-se para colher dados relevantes, captar sinais reveladores, esmiuçar fatos e personagens, identificar relações de causa e efeito, mas tudo acaba sempre insuficiente, incompleto, aquém das pretensões do respectivo ensaio, relatório ou artigo. Tarefa inglória a de quem tenciona tratar, como realidade tangível, essa ficção chamada Brasil.

O observador vê o que ocorre, começa a tecer considerações em torno do que viu, mas, nem acaba, a ocorrência já dá lugar a outra, em geral contraditória da primeira, numa roda-viva inimaginável para qualquer nação de verdade. Senso e contra-senso alternam-se com tanta facilidade que só podem ser obra de ficção.

São muitos os exemplos. Quando o Plano Cruzado saiu, em 1986, arrastou milhares de crédulos às ruas, em sua defesa. A cidadania despertou e entusiasmou-se, mobilizando-se com admirável espírito de participação em um projeto que parecia destinado a colocar o país enfim nos trilhos da estabilidade e do desenvolvimento com equilíbrio e justiça social. Menos de um ano depois, os cidadãos saíram novamente às ruas, mas dessa vez inconformados com a total reviravolta que representou o fim abrupto daquele Plano. Tinha que dar certo, mas não deu! Podem-se enumerar diversos fatores na tentativa de explicar o que aconteceu. Não obstante, foi tudo muito simples. O Plano Cruzado não passou de ficção. Delírio de quantos ansiavam pela retomada da democracia após décadas de cerceamento das liberdades individuais. Quem acreditou...

Em 2006, incensado pela conquista da quinta Copa do Mundo de Futebol quatro anos antes, o Brasil preparou-se para o hexa, confiante no que parecia ser um timaço. A campanha foi pífia, porém, e frustrou milhões de torcedores (inclusive este narrador). Neste país de técnicos e “autoridades” esportivas, sobraram análises contundentes quanto às razões do fracasso. Poucos perceberam, porém, o óbvio ululante, pois já não estava entre nós o sábio Profeta Tricolor, Nélson Rodrigues, para revelá-lo. O esquadrão de 2006 constituiu pura ficção, do que já dava indícios o seu propalado “quadrado mágico”. Ainda existe quem acredite em mágica?

Alguém cederá à tentação de perguntar se, por outro lado, o pentacampeonato não terá sido real. Nada! A exemplo das tristezas, as alegrias não passam de obra do imaginário daqueles que as sentem.

A ficção parece povoar as mentes e corações brasileiros. Com facilidade inusitada, criam-se mitos a respeito de variados e sucessivos “salvadores da Pátria”, de perfis distintos, quando não absurdamente incompatíveis. É como se o salvador anteriormente preferido se volatizasse no espaço da imaginação coletiva para ser substituído por seu sucessor oposto do momento (até o advento do próximo, naturalmente). Processo dos mais compreensíveis, já que tudo é ficção. Nem requer explicação mais elaborada para as díspares preferências.

A educação é outro exemplo da ficção que envolve o Brasil. Fala-se muito do tema, autoridades reconhecem a importância do papel da educação como elemento transformador do país, mas fica tudo por isso mesmo. O futuro consiste em uma figura fictícia, pois não?

Por sinal, nada melhor para caracterizar o Brasil do que o decantado mote ou vaticínio do “país do futuro”. Tão etéreo, tão abstrato, tão ilógico quanto o incontido e generalizado apego pelo ficcional. Eta gente brasileira receptiva a parábolas e fábulas, capazes de alimentar sonhos e pesadelos ao mesmo tempo! Tanto faz. Importa a crença ou a descrença de cada um. Tudo, no fundo, é ilusão.

Desde o nascedouro, o Brasil tem sido figura fictícia. “Descoberto” pelos portugueses, tornado independente de Portugal por um príncipe lusitano (dá para acreditar?), tendo quase como único herói um cidadão que lutou pela liberdade (outra grande ilusão!), fracassou, foi morto e esquartejado, um país desse porte não pode ser levado a sério. Querer mudá-lo então para melhor deve constituir um desses casos de alucinação coletiva. Só pode!

PS: consolem-se, no entanto, os que admitirem que o Brasil é um país fictício, cuja possibilidade de transformar-se está além da imaginação. A “realidade” de ser uma ficção também constitui outra ficção, assim como a própria vida em geral e esta crônica em particular, bem ao gosto deste ficcionista.

Brasília, março 2024.

* Tiago, Praxedes e Mourão são personagens de vários contos e crônicas do autor.