Casca de ovo

Depois de sete anos pagando aluguel, aos 26 anos, Roberto finalmente conseguiu financiar a casa própria. Apesar de ser aqueles modelos 3 X 4, econômicos, em infinitas prestações, era sua. Aliás, do banco. Enfim, a sensação era única. Foi o primeiro a se mudar para o pequeno apartamento de quarto, meia sala, meia cozinha, banheiro e um tanque. Seus poucos pertences couberam na caminhonete do patrão numa única viagem, mas encheram satisfatoriamente o imóvel. Por alguns dias, reinou absoluto no prédio de 4 andares, com direito a ir de cuecas pelas escadas jogar o lixo fora. Mas o seu sossego durou pouco, já que no final daquela semana, quando chegou do trabalho, descobriu que o apartamento 403, acima do seu, estava ocupado.

Naquele mesmo dia começava seu martírio. Percebeu, sem esforço, o quão finas eram as paredes e o teto do lugar.

— Que casca de ovo! — Diria minha falecida mãe.

Tudo bem que é normal e compreensível se ouvir um arrastar de cadeiras, um salto alto, um copo quebrando, mas aquilo era demais. Dava pra se ouvir não só as conversas dos vizinhos como também todos os ruídos do corpo humano, dos mais calientes aos mais bizarros ou nojentos que se pode produzir.

Com o passar dos dias descobriu que seus vizinhos do andar de cima eram um casal na faixa dos 40 anos. Ele, Sr. Agildo, era um homem “GG” com uma barriga digna de medalha pelos anos à serviço do álcool. Ela, Dona Hilda, mulher franzina, mas com voz estridente feito um garfo numa lousa, acostumada à submissão e ao labor doméstico. Até que eram gente boa. Por sorte (de Roberto, é claro), eles não tinham filhos (também, não conseguiriam acomodar viva alma em tão apertada moradia), apenas uma maritaca, que dispensa esclarecimentos.

— Que o bom Mestre tenha piedade de mim! — exclamou sozinho.

Os dias foram passando e Roberto se inteirava, involuntariamente, da vida do casal. Era impossível não ouvir.

Descobriu pelo teto que Dona Hilda roncava e falava dormindo, que o Sr. Agildo era intolerante à lactose e urinava à prestação, sem falar nos momentos íntimos que o ranger da cama denunciava. Por sorte (de Roberto, mais uma vez) a frequência era pouca.

— Senhor da Glória!

Roberto passou a evitar o próprio lar. Chegava em casa descalçando os sapatos pra não fazer barulho. Ouvia música baixinho. Tudo pra preservar um pouco da sua intimidade.

Mas algo que deixava Roberto visivelmente apreensivo era a descarga dos moradores. Era obrigado a ouvir os dejetos percorrerem os canos do teto e da parede embalados naquele turbilhão de água até sumirem por completo, e enquanto ouvia, rezava para que pelo menos o material hidráulico do prédio fosse de melhor qualidade do que o concreto e o isolamento acústico (se é que havia algum).

Diante de arquitetura tão pouco confiável, não tinha coragem de falar ao telefone, se não fosse aos sussurros, assistir a um filme para maiores, se não fosse sem volume, ou convidar uma “amiga” para “pernoitar” se não fosse muda. Um dia chegou meio tonto após uma despedida de solteiro depois do trabalho e no dia seguinte os vizinhos passaram a olhar pra ele com risinhos. O que os vizinhos ouviram, só Deus sabe. Tinha medo até de imaginar.

Sua vida parecia a de um indivíduo privado de liberdade. Aliás, eles provavelmente tinham mais liberdade que o pobre Roberto. A realidade é que, quando os barulhos de pigarros, arrotos, espirros, gemidos e flatulências não eram produzidos por ele, era muito difícil tolerar e ignorar.

Sua agonia durou dois anos cinco meses e vinte e sete dias. Assim que pode, vendeu o apartamento e comprou uma casinha. Distante do centro, distante dos vizinhos, quase no meio do mato, na verdade, mas estava livre dos barulhos indesejados.