Pipoca

Um de meus maiores pesares vivendo neste século de tons cinzentos e regido pela frígida e igualmente cinzenta mão da Tecnologia é constatar que a picaresca figura do barbeiro vem desaparecendo. Não a profissão em si, já explico-me aqui para que meu leitor não pense que vivo em algum universo paralelo onde barbeiros estejam em falta – reitero que disse “a figura”, e há diferença entre a figura e a pessoa.

Quando digo que a figura do barbeiro faz falta refiro-me àqueles coloridos personagens dos romances e das óperas – o bom e velho Fígaro, o “factotum della città”, que não só corta os cabelos da clientela como também lhe oferece máximas graciosas, serve de mensageiro aos namorados repassando seus bilhetinhos, faz as vezes de médico, e no geral serve como fonte de notícias de todo o microcosmo de um povoado. Eu particularmente acho deveras tedioso sentar-me à cadeira de um barbeiro que nada fala, sem engajar-se com seu cliente – ainda assim, a falta de bons modos compensaria se ao menos o serviço em si fosse bem-feito, e eu próprio, que não gosto muito que mexam em meu cabelo por períodos prolongados de tempo, fui muito infeliz de encontrar barbeiros ruins em ambos os quesitos – separadamente ou não.

E é pensando nisto que pego minha pena para homenagear um dos derradeiros espécimes desta raça em minha cidade – quis fazê-lo enquanto ele ainda vive, em demonstração do grande carinho que sinto por ele, pois quero que ele leia este relato de um jeito ou de outro antes que a Morte venha a fazer seu sórdido trabalho. Este meu amigo já não vem se sentindo bem, pois o peso da idade é algo horrível, e ele também já não corta cabelo com a frequência de antes, portanto opto por descrevê-lo agora fazendo desta crônica um conto divertido e não um memorial. Não apenas isto; nesta cidade de sei lá quantos mil habitantes, é uma das poucas pessoas de bom coração.

À primeira vista, pode ser que a figura do barbeiro Pipoca (que é como todos o conhecem, por razões que são estranhas a mim, e como a bom entendedor meia palavra basta apenas o apelido é o suficiente) aparenta não transmitir nada de mais: é tão somente um gentil senhor na casa dos 60 anos. No entanto, suas aventuras preencheriam páginas e páginas de um agradável romance picaresco aos moldes do “Gil Blas”, e mesmo suas feições, bastante semelhantes às do ator cômico italiano Totò, comprovam que nasceu ele para divertir-se e divertir-nos. Jack of all trades, sempre que o encontro está ele se ocupando com algum hobby-horse; uma hora desenhando, outra escrevendo uma história, ainda outra paquerando uma mulher, na companhia de um inseparável cigarro. Se perguntado, terá ele mais de mil histórias para contar de suas viagens à Europa, que igualmente mereceriam um romance in its own right.

Uma pessoa não precisa ser necessariamente erudita para que eu seja sua amiga; basta apenas que tenha histórias para compartilhar. Às vezes não consigo explicar de modo apropriado minhas pretensões literárias a ele, mas não quer dizer que não tenhamos respeito mútuo. Em troca de suas histórias ensinei-lhe um pouco de inglês e russo, e dei-lhe algumas aulas de literatura; gosto das interpretações coloridas que dava às minhas palavras. Conversamos sobre a situação deste nosso triste mundo, as paisagens mediterrâneas que visitou, os tempos já idos, de modo sagaz mas sem que sejamos pedantes ou pretensiosos. É uma pena que, dentro em breve, o querido Pipoca pode partir ao Grande Desconhecido, mas se tenho uma certeza é a de que, se houver um Paraíso, se sentará ele ao lado do pároco Yorick como um irmão de outra mãe – e de outro século.

Como, porém, prometi, não quero acabar este relato de forma lutuosa, pois meu amigo segue vivo e, enquanto o faz, quero que saiba que tem um companheiro em minha pessoa que quer imortalizá-lo em meio a minhas linhas de texto que sigo escrevendo mesmo que para ninguém. Deixo a qualquer um de meus leitores uma das várias histórias que lhe sucedeu, e que melhor exemplificam seu caráter bonachão elencando dois de seus maiores hobby-horses: mulheres e cigarros.

Ouvi esta história há exatos cinco dias, a última data de meu encontro com Pipoca. Desde alguns anos ele vem sofrendo do coração, precisando ser internado vez ou outra, e isto fez com que ele desacelerasse seu trabalho e interrompesse seu hábito de fumar os cigarros que tanto ama. Mas eis que, algumas semanas antes, havia ele recebido a visita de uma cliente – do sexo feminino; uma das mais apetitosas MILFs que tivera ele o prazer de receber. (Como ele não a descreveu em detalhes, pintem vocês, meus leitores, à sua maneira, a mulher de sua predileção.) Pipoca é um grande paquerador, e sabe como tratar uma mulher; conversa vai, conversa vem, estava meu amigo cantando vitórias por estar perto de não ser mais um bachelor quando o que aconteceu pôs tudo a perder, e é em suas próprias palavras que concluo a história:

“Ela acendeu um cigarro, e eu estou há meses sem fumar… Não só isto, ela era muito bonita, mas a saudade do cigarro falou mais alto e tão somente para sentir o cheiro do tabaco dei-lhe um beijo próximo à boca… Nos encaramos por algum tempo, ela se despediu às pressas e foi embora… Matei a saudade de fumar mas acho que nunca mais a verei de novo…”

(São Carlos, 19 de abril de 2023)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 30/10/2014
Reeditado em 22/11/2024
Código do texto: T5017358
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