Quero nada!
Ei, Senhor tempo! Olha aqui. Veja o que vem fazendo comigo. Já faz 51 anos que caminhamos juntos nessa existência. Sabe, parece muito mais que isso! Estou tão cansada.
A Dona Vida não foi muito bondosa comigo e continua não sendo. Existência pesada, cheia de afazeres, de dores, de cuidados com outros, de estudo, casamento , maternidade, manter aparências, de engolir choro, erguer a cabeça, levantar sozinha do chão pra seguir atrás da Vida. Nunca importou como eu estava, estou, fico... Só siga em frente que " no final tudo dá certo"!
Infância com pais trabalhando, avó que não gostava de mim, chinelo que voava e eu, bem, também não cooperava muito: vivia aprontando. Gostava de fazer birra, uns beliscões em minha irmã, mastigar de boca aberta, me intrometer na convertidos adultos, respostas quando era pra "calar a boca" e, opa, uma chinela da, mais um beliscão, uma palmada, chinelo que mais parecia um bumerangue. Ainda ouvia um " Corre pra ver que vai apanhar dobrado". E eu ficava ali, parada, esperando o castigo. Conta foi quase, mas o Universo dessa vez conspirou por mim e desistiram!
Adolescência uma imensa confusão: brigas de pai e mãe, separação, amante, gritos, idas e vindas, " sacos de lixo de pai" sendo jogadas em meio a chuva para colocá-lo pra fora POR MIM! Minha irmã, olhava e chorava, entre lágrimas. Isso, vida! Aquele homem que era meu herói, que me socorria na escola, na hora de dormir, sendo expulso por mim de casa, por ordem de minha mãe. Aquilo doeu nele, mas dilacerou meu coração: por que, Vida, eu?
Eh, Senhor Tempo, você seguiu... A menina, que se viu adolescente e adulta em um curso espaço de tempo de um ano, aos treze trabalhava, cuidava de um negócio da família, cuidava das dores do pai, dificilmente via a mãe, estudava à noite e começou a namorar. Dona Vida de novo, me colocando em batalhas hercúleas, onde cada prova parecia um monstro que me engolia e cuspia pior depois. Nunca, um minuto de sossego: apenas pílulas ínfimas de alegria para sobreviver e continuar.
Olha, Tempo... Ficamos tão íntimos.que nem fui te sentindo passar: crises de bronquite para chamar a atenção de ninguém, namoro, noivado, casamento, mudança, as lágrimas de minha mãe, filha, filho, trabalho, um sobe e desce ladeira a pé, de bicicleta, de carro. A loja, a escola, traição, o desânimo, a tristeza, a perda, dor. Dona Vida, resolveu que era preciso que eu sobrevivesse a qualquer preço, não importava como. Separação.
Já nesse tempo, beirava meus trinta e três anos, como alguém que já tivesse vivido séculos. Sabe, uma vontade louca de desistir de tudo, de resetar a existência, de mudar. Ah, mas os filhos precisam da mãe! A escola precisa da professora! O salário tá pouco. Não, você não pode fazer o que quer, nunca! Tem que seguir regras, padrões, obrigações. Engole o choro, a vontade, o ego, a arrogância e continua porque a Vida não pára porque você não está aguentando!
Casamento refeito, filha "rapa de tacho" ( o porquê de ter conseguido continuar), filhos crescendo, formando, morte de minha mãe, de minha avó, curatela de meu pai quase morto pela " esposa". Peraí, Tempo! Calma! Me sinto envolvida em névoa. Não sei onde estou, não enxergo o passado que correu e não sinto o futuro. O hoje, passa tão rápido que já é amanhã, as estações passaram, assim como os filhos, como o corpo, como o cabelo que era preto.
Àquelas pílulas de alegria diária não fazem mais efeito, nem com doses aumentadas. Um vazio! Uma sensação de NADA! Nada para rir ou chorar, nada para comer ou não, nada para aprender. Vontade de nada! Nem de brigar, nem de levantar, nem de pensar.
Resta o nada, o vazio, uma vontade tão grande de silêncio de fora e de dentro. A busca por algo que não existe, a espera de que agora, Senhor Tempo você tenha uma solução juntamente com a Dona Vida para resolver esse torpor, essa sensação de NADA, essa vontade de NADA, esse esperar NADA!
E a história de que " no final tudo dá certo", é mais uma tentativa de criação de pílula de alegria, totalmente ineficaz para quem chegou no NADA!
Vida ✓
Casamento ✓
Filhos✓
Religião ✓
Estudo✓
Profissão ✓
Cuidados com os outros ✓
Sociedade ✓
Eu? Eu não faço parte dessa história, fui apenas uma pecinha no tabuleiro em que jogavam a Dona Vida e o Senhor Tempo, esperando a hora do "check mate".