Hoje eu matei um milagre
Acordei com o peso do mundo nas pálpebras, como sempre, me arrastando entre passado e futuro, incapaz de habitar o presente. A respiração era um fardo, a rotina um cárcere. A esperança? Uma miragem distante, promessa que nunca se cumpre.
Então, percebi: algo em mim ainda brilhava. Era um lampejo de possibilidades, um milagre - pequeno, trêmulo e frágil que, por alguma razão, insistia em existir, mesmo na paisagem árida da minha descrença.
Mas eu não o soube acolher. O matei com palavras mordazes, silêncios frios e a negação sistemática de qualquer faísca de beleza. O esmaguei com a dureza da lógica, com a desesperança dos céticos e a covardia dos que já se decepcionaram demais. O aniquilei cedendo ao medo, me encolhendo diante do imprevisível e rejeitando o novo porque o velho me era familiar.
Hoje eu matei um milagre, e percebi que todos fazem o mesmo, todos os dias. Matamos milagres quando escolhemos a inércia ao invés do risco, a indiferença em vez da entrega, o conformismo no lugar da revolução. Matamos sonhos antes que germinem, sentimentos antes que floresçam, caminhos antes que sejam percorridos. O pior: às vezes, somos nós os milagres que morrem. Engolidos pela rotina, soterrados pelas expectativas alheias, dissolvidos no ácido do tempo. Aos poucos, deixamos de existir no que temos de mais autêntico, de mais puro, de mais nosso.
Hoje fui eu que matei um milagre. Temo que, amanhã, alguém mate a mim.