Às vezes, nem mesmo o amor
Levantei cedo hoje. O silêncio da casa parecia um lembrete do que já não éramos. A rotina me guiou: o café fumegante na xícara, os ovos mexidos na frigideira, o aroma das torradas saindo da torradeira. Gestos tão automáticos que quase pareciam vindos de outra vida, de um tempo em que esses rituais faziam sentido.
Você desceu as escadas com o cabelo bagunçado, o olhar sonolento de sempre. Deu-me um sorriso, aquele sorriso que antes fazia meu coração disparar, mas que agora não passava de um eco distante de algo que já se foi. Sentou-se à mesa, tomou um gole do café, comentou sobre o tempo. Eu assenti, como quem assiste um filme pela décima vez, já sabendo todas as falas.
Enquanto comíamos, lembrei-me das noites. Noites em que a sua presença era um peso, mais do que uma companhia. Dos olhares de desdém que você lançava aos meus textos, chamando-os de perda de tempo. Das comparações com suas colegas de trabalho, mais jovens, mais bonitas, mais "interessantes". Era sempre esse vazio que me fazia acordar em meio à madrugada, esperando você adormecer para poder chorar em paz.
Mas havia também os dias. Dias em que você ria despretensiosamente, segurando nosso gato nas mãos, reclamando das marcas que ele deixava na sua pele. Dias em que você dançava na sala, transformando o ambiente com sua energia, quase apagando as sombras que nos cercavam. Dias em que eu me perguntava se a alegria desses momentos seria suficiente para apagar a dor das noites.
Hoje, porém, algo mudou. Talvez tenha sido a maneira como a luz da manhã bateu na sua expressão apática, ou o som do seu riso que já não me alcançava mais. Talvez tenha sido o cansaço acumulado das noites insones, das palavras que nunca foram ditas, das mágoas que nunca sararam.
Terminei minha xícara de café, levantei-me devagar. Peguei a carta que havia passado a noite inteira escrevendo e a coloquei na sua frente. Você me olhou, intrigada, mas não disse nada.
“Às vezes, nem mesmo o amor é suficiente.”
Essas foram as únicas palavras que deixei. Estavam escritas em tinta preta, borradas pelas lágrimas que chorei ao escreve-las.
Antes de sair, olhei ao redor. Vi o gato dormindo no sofá, a sala de estar que um dia foi cheia de risos, as memórias que construímos. Tudo parecia tão familiar e, ao mesmo tempo, tão distante.
Fechei a porta atrás de mim.
Não precisamos morar numa casa construída sobre a dor.