O que nos tornou humanos?
O que nos tornou o ser humano – o homo sapiens – que somos?
Não é uma questão de fácil resposta, aliás, como quase tudo que tem importância na vida. Do mesmo modo, também, não se esgota numa única resposta ou definição. Nossa humanidade é objeto de ‘estudo’, ‘reflexão’, ‘conhecimento’ dos mais diversos campos do saber.
A resposta mais antiga e que segue a mais amplamente aceita é a religiosa. Deus, deuses, seres ou entes espirituais estão na origem de tudo o que existe, e o ser humano é parte de tudo o que foi criado. O ato criador é representado de inúmeras formas: moldado com barro, lama, a massa do milho cozida, as lágrimas de um deus etc.
Em algumas narrativas mitológicas o ser humano é apenas um escravo – servidor das divindades; em outras, por exemplo a judaico-cristã-islâmica somos o que de melhor Deus criou e a quem ele destinou o usufruto do que existe. Nesta ‘versão’ criacionista o humano ‘é pouco menor que as estrelas’, ele carrega em sua alma/espírito a ‘imagem e semelhança de Deus’.
Existem outras explicações, também de fundo mítico-religioso, em que o humano e sua existência é parte de uma natureza sempre em movimento, em devir, e nossa essência pouco se diferencia da uma pedra, planta ou outro animal.
No horizonte religioso o humano ‘sempre’ terá suas respostas existenciais no sagrado. Seja ele visto como retorno á plenitude de uma vida eterna, seja nas reencarnações sucessivas ou outra forma de junção com o sobrenatural. É um ato de fé, e não se iluda isso é racional, mas de uma lógica que não está na chamada ciência moderna. É uma crença tão profunda que emoções, sentimentos, utopias, esperanças e sonhos a fundamentam e a sustentam.
Para o conhecimento moderno – com pouco mais de 400 anos – a busca pelo que nos tornou humano, também gerou explicações ‘científicas’ diversas e não está estabelecido um consenso. Existem aqueles que buscam na biologia o que nos tornou humanos e, aqui a paleontologia vem construindo hipóteses: o polegar oposto, o tamanho e as divisões internas em nosso cérebro, o andar ereto, os órgãos relacionados a capacidade de falar/comunicar-se etc.
A evolução presente no ramo dos primatas levou ao surgimento dos primeiros hominídeos e, numa sucessão ainda cheia de lacunas, foram surgindo ‘experiências’ que fracassaram ou foram superadas por novos grupos humanos e, ao final, restando no mundo apenas o homo sapiens. É evidente para a resposta biológica que a extinção dos demais humanos contou, também com questões relativas ao ambiente (glaciações, desertificação, mudanças no clima da Terra...) e, a ação do próprio sapiens dominando territórios anteriormente usados por outros humanos.
Neste horizonte não existe intencionalidade ou ação divina a determinar o que e como um ser se tornou o humano. Tudo está vinculado a matéria em seu perpétuo movimento de fusão de elementos minerais e orgânicos. Na teia evolutiva as mutações por adaptações ou mesmo a partir do acaso, constituem o tecido da vida...o que funcionou e tornou-se hereditariedade vai adiante. O que resultou inadequado e pouco viável rapidamente desaparece. Em termos biológicos, isso pode significar, décadas, centenas, milhares ou até mesmo milhões de anos.
Em minha leiga opinião o que nos fez humanos foi a capacidade de colaboração de uns para com os outros. Junção de esforços para, inicialmente, assegurar nossa continuidade como espécie. Cuidados especiais na gravidez e nos primeiros anos de vida da criança tinham prioridade e recaiam sobre todo o coletivo. Isso explica, pelo menos em parte a existência de famílias extensas (pais, tios, avós, primos...) e o surgimento dos clãs.
Colaboração que está na origem do desenvolvimento da linguagem e, da transmissão da memória e identidade do grupo. Também, fundamental para qualquer avanço tecnológico: o domínio do fogo, a manipulação de metais, a invenção da roda, a domesticação de plantas e animais, a fabricação de utensílios e ferramentas em geral, o desenvolvimento de armas, diques etc.
Não foi a competição a matriz de nossa humanidade, pelo contrário, ela só se torna relevante quando inventamos os ‘esportes’, o ‘treinamento’ para a guerra e, em alguns casos, como caminho de acesso ao poder. Só recentemente, em termos humanos, a exacerbação do individualismo e suas inúmeras formas de capacitismo fez disso uma ‘necessidade’, um caminho obrigatório para quem deseja ser um vencedor.
Para mim, considerando a condição humana ao criar as religiões em geral e, o progresso científico e tecnológico, entendo que tudo só funciona de modo eficaz se tiverem como premissa a colaboração.
Nas religiões, em geral, a salvação e/ou o encontro com o sagrado, é na maioria das vezes pensado como algo coletivo. Na tradição judaico-cristã temos a figura do povo de Deus e, em jesus o anúncio e a busca permanente do reinado dos céus/de Deus. Tudo isso é comunitário e coletivo. O indivíduo aqui é um elo em uma extensa corrente. O culto a uma divindade e a perspectiva de um céu privado/particular é invenção recente e está, a meu ver, fadado ao fracasso.
A ciência só evolui se o conhecimento atual for questionado e suplantado por novas ‘descobertas’ ou melhoramentos no que já existia. Qualquer inovação/invenção humana (tecnologia, cura de doenças, genética, informática...) carrega o protagonismo de centenas ou até mesmo milhares de pessoas que coletivamente foram produzindo pequenos avanços.
É claro que não estou falando aqui do discurso empresarial atual, que ao explorar os trabalhadores utiliza o termo colaborador para incentivar a ‘fidelidade’ e a produtividade do empregado. Esse discurso fajuto de RH, de metas a serem batidas e acenos quase sempre ilusórios de promoção individual, sequer se aproxima da ideia de colaboração aqui descrita.
Feita essa ressalva, bem-vindo ao mundo coletivo e colaborativo, pois é nele que está e sempre esteve nossa humanidade.