TRAUMA ADOLESCENTE E CÍVEL
Eu era novo. Tinha apenas uns 17 para 18 anos; é incrível como certos acontecimentos causam traumas, às vezes irreversíveis em nossa vida, e eu tinha visto tantas coisas em tenra idade que meu coração estava apertadinho dentro do peito, só não sabia como iniciar uma conversa, para pôr para fora tudo aquilo:
- O que você tem? Minha namorada me perguntou.
- Nada. Eu tentei ser imparcial e não passar nenhum problema, mas ela insistiu.
- Conta, mô! Estou aqui para lhe ouvir.
Então, em minha inocência, comecei a falar sobre o que estava me incomodando naquele naqueles dias. Afinal, não conseguia compreender de onde vinha tanta maldade do coração humano: um homem com vários tiros na cabeça, sendo arrastado como se fosse pipa, enquanto a rabiola passa pelo chão pedregoso. Lembro-me que um policial comentou friamente, como se aquela morte lhe fosse trazer menos trabalho:
- Menos um.
Lembro-me que os meus vizinhos, num senso comum, apoiaram a morte de um ser humano. Mas, que julgamento era aquele que não houve juíz e nem advogado de defesa? Seria a humanidade corrompida "para o bem maior"? De verdade? Relembrando esse fato, penso que é o pensamento do diabo na cabeça dos seres humanos e não o pensamento que deveríamos ter para com os nossos semelhantes!
O tempo passou, quando certo dia vi um trabalhador, motorista de lotação, quando ainda não era proíbido esse tipo de serviço, ser baleado com três tiros. Ele nem tinha conseguido descer da Van. Três dias antes desse acontecimento o mesmo assassino havia assassinado um frentista, num posto de gasolina, na Avenida do Cursino e até fora televisionado, mas não fora preso. Não houve tempo de reação. Vi cada impacto de cada bala na cabeça, pescoço e costela do homem, que debruçou por cima do volante, após o terceiro disparo. O desespero fora enorme! Saí correndo, que em menos de cinquenta metros já tinha perdido o fôlego, enquanto via meus amigos virando a esquina da viela que dava para a Avenida do Cursino.
Outro dia, no horário do almoço, quando trabalhava numa gráfica, vi dois caras dentro de um Passat bege turbinado. Era moda ter carro turbinado na segunda década de 90. Eles desceram do automóvel, abordaram um jovem do outro lado da praça e dispararam contra ele, que não teve tempo de reação. Meu irmão, um amigo de serviço e eu nos escondemos atrás de uma banca de jornal, quando vimos o motor do Passat cuspindo aquele famoso som de motor turbinado em cada passada me marcha, os pneus queimando o asfalto; e eu fui almoçar com aquelas imagens na cabeça.
Não demorou muito tempo. Narizeu e eu, um amigo que eu o apelidara assim, por conta do seu nariz adunco e torto, estávamos na laje da casa dele, conversando. Escutamos três estampidos, no início da Rua Guaianá, esquina da Avenida Padre Arlindo Vieira.
- Vishe! Alguém morreu, Narizeu. Eu disse.
De repente vimos um carro bater no poste, na esquina da rua, ao lado da viela e praticamente em frente do Colégio Olavo Fontoura.
- Agora morreu de verdade. O Narizeu disse.
Então, vimos um automóvel verde escuro parar perto do carro que tinha batido no poste e ouvimos mais uns quatro estampidos e o automóvel cantando os pneus, saindo da cena do crime, indo sentido à favela do Jardim Maristela.
Como eu fui inocente naquele dia.
- Vamos lá ver, Narizeu.
Ele concordou comigo, e fomos. Quando cheguei ao local, coloquei minha cabeça dentro do carro batido e vi o último suspiro daquele jovem, enquanto sua vida escorria pelo banco do carro, seu rosto deformado...
- O que você tem? Minha namorada me perguntava, esperando que eu contasse alguma estória da carochinha.
Abri meu coração. Como fui inocente! E, como poderia descobrir que ela seria tão fria a tal ponto? Sempre tive na cabeça de que a mulher é a ajudadora do homem. Ela poderia não ter me dito nenhum a, mas a resposta foi:
- Quanto drama!
Eu fiquei quieto por uns segundos infinitos. Abria um buraco no meu coração que carrego até nos dias de hoje, mas na época eu não sabia disso. As cenas não me chocam mais como me choram na época, porque aprendi a conviver com ela. Minha bunda já estava doendo, porque estávamos sentado em cima de uma tampa concreto. E o que eu disse?
- Tudo bem... - Fez um silêncio infinito. - Você acha que é drama... - Eu continuava falando pausadamente. - Não lhe conto mais nada daqui para frente.
E realmente nunca mais lhe contei nada, por mais que precisasse ou sentisse de contar, porque ali abriu-se um bloqueio dentro do meu coração.
Ironia do destino ou não, o pai dela morreu anos depois. Nosso relacionamento não estava nada bom. Aliás, devo ter ido ao enterro somente por consideração. Ela chorava; falava um monte de coisas que não faziam mais sentido, já que o velho não ouvia e eu pensava comigo que era somente para chamar a atenção das pessoas. De repente desmaiou e eu pensei: "Quanto drama". Confesso que me julguei por ter tido esse pensamento, mas quando meu pai morreu eu não fiz nenhum estardalhaço. Hoje, penso que tudo aquilo fora a culpa, por ter sido uma filha tão desobediente nos últimos dias do velho.
Agora; se hoje em dia eu sou falante e ao mesmo tempo não digo nada sobre mim, nem espero compreensão alheia, porque pode ser mais um drama e, com ou sem drama, melhor viver minhas dores e infernos internos sozinho até que encontre uma pessoa que ao menos me abrace, quando a dor afligir meu coração, caso ela sinta minha dor e deseje me abraçar.
Dureza de coração? Não. Continuo sentido e sentindo e sentindo um turbilhão de sentimentos, bloqueados pelo trauma que posso julgar infantil, como o bicho papão de Harry Potter que muda de forma para cada pessoa. Comigo, ele muda de forma a cada dia que passa e quanto mais ganho experiência, torno-me uma caixinha fechada.