O Maestro e o Abismo.
"Quando você olha por muito tempo para um abismo, o abismo também olha para dentro de você." - Friedrich Nietzsche
O maestro posiciona-se, corpo ereto, cabelos longos, brancos e emaranhados. Em sua vestimenta inebriante, como se nunca a usara antes, o intérprete das claves e seus negros símbolos respira e eleva seus braços para segurar a batuta – inquietação.
Olha à sua frente: dezenas de almas musicalizadas representam seus instrumentos oníricos – devoção. Aguardando o sinal do mestre, que com olhos atentos e perspicazes sedento está para introduzir cada um de seus personagens no momento e intensidades corretas – apreensão.
Ao primeiro movimento, as madeiras elevam cordialmente o público aos céus de Dante (que não o conhecera) – emoção. O maestro emociona-se, ouvindo suas lágrimas de deleite provindas de seu mais puro amor ao criador. Ali era seu momento de encontro com o divino – conexão. Uma busca desesperada pelo perdão de seus mais egoístas sentimentos e convicções artísticas. Seu abismo, ao acreditar piamente que seus gostos musicais eram os únicos relevantes à humanidade – remissão.
As vozes, sim. A alma da peça. Tenores, sopranos, barítonos e contraltos em perfeita dança harmônica trazem ao público um convite ao silêncio – comunhão. Sim, pois ao divino devemos silenciar nossos porquês, dando espaço à alma. Momento esse que o maestro sente que apenas nessa hora suas vozes calam-se. A chave da conexão com o infinito é apresentada.
A ascensão aos céus poderia traduzir esse momento na sua mais nobre definição da perfeição. Mas o maestro precisa olhar ao seu redor, e em um rompante dinâmico suas vozes o remetem ao abismo, olhando assim para baixo. Sua ascensão possui um preço: o abandono de sua sombra. Ambos então duelam com a mudança dinâmica das belas vozes em uma triste referência à realidade. Os céus deveriam aguardar.
As percussões, em suas marcações silenciosas, dão espaço à imaginação, como a de um lago refletindo seu próprio reflexo. O maestro encontra seu espelho fragmentado pelas várias sessões da orquestra, levando-o ao infinito de suas finitas possibilidades. O êxtase é silenciado com doçura e paz celestial, junto ao tormento do inacabado.
Seus braços delicadamente em movimento de pouso tocam seu corpo, e por aquele breve momento não havia mais eu, nem mais abismo – maestro.