O Peso de Fingir
Fingir. Um verbo pequeno, mas pesado como uma âncora lançada ao mar. Disfarçar o falso como verdadeiro, seja por sobrevivência ou por descaso. Quando criança, essa palavra aparecia em momentos quase banais, como um eco de advertência: "Para de fingir!" Eu fazia dengo para minha mãe, mas, curiosamente, ela nunca disse isso. Já na escola, era diferente.
No recreio, os chutes e trombadas no futebol eram inevitáveis. Caía no chão, a dor latejava como um trovão no corpo pequeno, mas o coro ao redor era imediato: "Para de fingir!" Por que a dor do outro sempre parece menos legítima quando vista de fora? Criança não entende isso. Naquele tempo, eu também fazia o mesmo. Diminuía a dor alheia com risadas ou frases sarcásticas, como quem tenta abafar um incêndio jogando gasolina. Que ironia, não?
Mas na infância, a crueldade era inocente. Os julgamentos vinham sem maldade, apenas como reflexos de uma sociedade que aprende cedo a desconfiar do sofrimento. Só mais tarde percebi que os adultos, muitas vezes, não são diferentes – só são mais habilidosos em mascarar a falta de empatia.
Anos depois, a vida me colocou diante de uma verdade amarga. Meu corpo se rebelou contra mim em silêncio, tomado por uma doença autoimune que transformou meu reflexo em algo irreconhecível. Primeiro o rosto: a boca e os olhos entortaram, como um retrato torturado pela gravidade. Depois, os braços e pernas se renderam, deixando-me à mercê de algo que eu não podia controlar.
Na emergência, recebi medicamentos e nada mais – nem diagnóstico, nem certezas. Voltei para casa, mas não voltei ao que era. E foi nesse momento que ouvi novamente aquelas palavras, desta vez vindas de quem deveria ser meu porto seguro: "Para de fingir!"
Não eram apenas palavras. Eram dardos venenosos que atravessavam meu espírito. "Ele tá fingindo. Quer chamar atenção. Vagabundo." Como uma sinfonia cruel, essas frases se repetiam enquanto meu corpo se desfazia. E eu, preso ao fardo de existir, sem forças para responder, apenas ouvia.
Percebi, então, que fingir não é só um verbo. É uma expectativa social. Fingimos para caber no mundo. Fingimos que estamos bem quando, na verdade, estamos despedaçados. E quando não fingimos, somos castigados pela sinceridade.
Minha luta foi como arrastar uma carroça com rodas quadradas. Cada movimento era um esforço além do humano, uma prova de que viver, às vezes, é um ato de resistência. E ainda assim, venci. Não sem marcas, mas venci.
Hoje, escrevo com um corpo que ainda carrega sequelas, mas com uma mente que encontra na leitura e na escrita um refúgio. Aqui, longe das vozes cruéis, construo pontes para o que realmente importa. Descobri que minha sintonia não cabe nas frequências rasas daqueles que julgam.
A vida é um constante fingir, mas também é um aprendizado de autenticidade. Espero pelo dia em que possa olhar o horizonte e ver nele paz. Talvez em solitude, talvez ao lado de alguém que entenda o peso das palavras. Até lá, sigo. Não mais fingindo, mas simplesmente sendo.