A CRÔNICA DO PERDÃO


 “ Portanto, se estás para fazer tua oferta diante do altar, e lembrares aí que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá tua oferta diante do altar e vai reconciliar-te com teu irmão, e depois vai fazer a tua oferta.”     Mateus, 5;23

                                                                                                                                          

Não é a Deus que devemos pedir perdão,

Pois se erramos, não é Ele o prejudicado.

Mas o mal que fizermos ao nosso irmão,

Só por ele mesmo poderá ser perdoado.

 

Também não o acharemos nessas igrejas,        

Que mais se parecem um supermercado.

Que vive vendendo perdão em bandejas,

Como se fosse produto industrializado.

 

Somente o indivíduo que sofreu a ofensa,

Pode dizer que tem a devida competência,

Para prolatar contra o ofensor a sentença.

 

Por isso Jesus diz: “ só escapa do castigo,

Quem no caminho resolve sua pendência,

E nunca leva para o tribunal um inimigo”


                                                             ***
 

O saudoso Garrincha foi um dos maiores jogadores de futebol que o Brasil já teve. Além de exímio em sua arte, ele era também um sujeito folclórico. Dizem que tinha o espírito de um menino, que morreu sem jamais ter se tornado adulto. Um dos mais conhecidos “causos” que se conta sobre ele ocorreu quando Vicente Feola, o técnico da seleção brasileira durante a Copa do Mundo da Suécia, em 1958, estava dando as instruções para o jogo contra os russos. “ Quando nós tivermos atacando, os russos vão fazer uma linha de quatro defensores na frente da área. Então o Didi deve passar a bola para o Garrincha. Ele dribla o lateral e cruza na marca do pênalti para o Vavá fazer o gol de cabeça, entenderam? Alguma pergunta? ”

Parece que todo mundo entendeu, pois balançaram a cabeça em sinal de aprovação, menos o Garrincha, que levantou a mão. “ Fala, Garrincha”, disse o técnico. “Eu entendi, professor. Mas isso já foi combinado com os russos?”


Essa anedota me veio a propósito de um sujeito que outro dia me confessou os erros que havia cometido com sua filha, de forma que ela foi embora de casa e nunca mais falou com ele. Católico confesso, ele é um sujeito que não perde missa e vive se confessando todo dia, e nunca deixa de pagar as penas que seu confessor lhe dá. “Peço todo dia para Deus me perdoar pela besteira que eu fiz com a minha filha”, disse ele.

“E para sua filha”, perguntei. “ Você algum dia pediu perdão a ela pelo mal que lhe fez?”  Nunca esquecerei a cara com que ele me olhou.


                                                                    
Acho que foi Leibniz, o famoso filósofo das “mônadas” que disse que o homem era tão incoerente que inventou um Deus perfeito, imortal, todo-poderoso, e ainda assim acha que pode aborrecê-lo com suas travessuras e trapalhadas. Faz suas besteiras e corre para pedir perdão, como se Deus fosse um cara cheio de sentimentos humanos, que faz “beicinho” e se magoa quando alguém deixa de fazer algo que contraria a sua suposta vontade (que por sinal ninguém nunca soube qual é.) Talvez tenha sido por isso que Jesus ensinou: “ acomoda-te com teu adversário enquanto ainda estás a caminho do tribunal, para que não suceda que ele te entregue ao juiz, o juiz ao ministro e este te ponha na prisão. Na verdade, te digo que não sairás de lá antes de pagares o último quadrante.”
Mas Jesus era um rebelde que pagou com a vida pela quebra dos paradigmas da sua época. Assim todo mundo continua pedindo perdão para Deus e poucos têm a coragem de seguir o conselho de Jesus e procurar o ofendido para obter dele a devida desculpa.
Talvez porque o perdão de Deus seja mais fácil de obter. Já houve tempo em que ele até era vendido por bom preço. Quem tinha grana comprava um lugar no céu com a maior facilidade. Até Giles de Rais, o maior serial killer da história, foi perdoado pela Igreja, embora o tribunal civil o tivesse condenado à forca pelas mais de mil crianças que ele matou nos seus rituais satânicos.

Agora, difícil é obter o perdão de quem foi ofendido. Esse sim, além do trabalho que dá, e a incerteza do sucesso, ainda exige uma dose de humildade que não é todo mundo que tem. Como diz o poeta, “Na estratégia do perdão/ muita  reza não adianta/ Vale mais a negociação. Até porque, se Deus nos perdoou, só vamos saber quando morrermos. Ou não.