Dona Odete

Aqui estou: sem Deus, mas com o mundo.

Desvaneço-me nessas palavras, e talvez não seja o único. Um vislumbre é imaginar-me coletivo. Ser mais alguém além de mim. Imaginar tanta gente por aí, caminhando rumo ao nada, e eu sendo mais um de tantos, porém menos otimista. Alegra-me acreditar que nada nos espera do outro lado da curva, senão mais uma curva das tantas curvas pela quais temos que passar. Cada qual, a seu modo, é verdade, mas que nenhum de nós voltará para contar como é, como foi, como será. Nosso rosto, nosso nome, nosso choro, nossa risada, depois da curva, a curva apagará.

Contento-me em acreditar que a morte não é nada senão mais uma ilusão que, ao nos visitar, sem escândalo, sem pressa, nos levará embora sem que tenhamos tempo de olhar para trás. De tal modo penso ser assim a tal transcendência: um reencontro com nós mesmos, numa sala de visitas imaginária e desbotada, sem tapetes de veludo, sem almofadas demodê, sem chá inglês ou biscoitos amanteigados. Uma reunião de uma única pessoa entre suas várias pessoas, mediado pelo silêncio, sem pressa, sem relógios, sem segundas-feiras. Uma visão sobre a morte otimista, portanto, desprovida de vaidades vãs.

Minha fé reside justamente em saber que, depois de tudo, seremos exatamente isto: nada. Saber que, depois de nossa última curva, em vez de nos transformarmos em algo fantástico, fabuloso, glorioso, seremos mais uma nota invisível na sinfonia imensa e sem maestro, em que nossa morte será nossa última curva, onde tudo se dissolverá em nada e onde finalmente iremos celebrar a vida.

Aqui estou eu: sem Deus, mas com o mundo, e me parece ser o bastante. Compartilhando do mundo, do mesmo mundo, de Dona Odete, que tinha 89 anos, e mãos trêmulas, e um olhar que não via muito além da luz que entrava pela janela. Mas Dona Odete tinha o corredor da casa, as flores na varanda, a própria janela e, principalmente, as lembranças que guardava numa velha caixinha torácica. Tinha o coração gigante, Dona Odete, onde cabia quase de tudo, menos a devoção por buzinas de automóveis.

Estive, em um dia de Finados, na casa de Dona Odete. Passei alguns minutos ao seu lado, na sua varanda, tomando chá (embora preferisse cerveja), ouvindo Dona Odete. Pude ver de perto seu sorriso suave, sua locomoção lenta, enquanto tudo a nossa volta, aos poucos, se transformava em lembranças. Há poucos meses, ao olhar por sua janela e enxergar algo que ninguém mais viu, Dona Odete fez sua última curva. Morreu Dona Odete, ficaram as curvas.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 02/11/2024
Reeditado em 02/11/2024
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