Resgate, do amor ao sentido da vida
Numa imensa cidade, quase um país, mista e metafísica, complexa, então real e fictícia, contemporânea, tendente do passado ao futuro, elabora-se o ambiente desta obra, O Resgate, onde o imaginário da escritora Iêda Lima nos leva à sensação de um fértil crescente, fazendo-nos cúmplices do que trama.
Quando a autora de um romance inicia o livro com um Prólogo, bem elaborado, que bem nos encaminha à leitura, definindo o que pretende comunicar, completa, assim, a obra. Até dispensaria o Prefácio, que assumirei, dado o honroso e prestigioso convite. Sugestivo, o Prólogo, desde seu início, é abrangente e preciso, sobre cenários em país fictício, mas com muitos traços de um país real. O livro propõe fatos do passado, vidas do presente, como relatasse cultas experiências vividas pela autora, por aqui, entre nós, ou, por direção oblíqua, em outros países, aonde foi forçada à vida do exílio, também à busca de liberdade, sempre aprendendo a aprender. Aprendizagem que, ao mesmo tempo, compreende o físico, o biológico, o psíquico, o histórico, o cultural e social dos seus personagens, que se simplificam pela sua visão e sua concepção de weltanschauung, no social da sua narrativa, onde cada personagem por si mesmo se educa.
Seus personagens parecem existências de dupla identidade ou filosoficamente de “unidualidade”, como na conceituação de Edgar Morin. O constructo dos diálogos ou das conversas, num linguajar próprio, esclarecerá esse aspecto. Contudo, diga-se que a romancista conhece bem as partes e não ignora como essas partes se integram na inteireza do todo, todo que se fragmenta em partes afetivas e relacionais. O romance se enriquece, na beleza da simplicidade, quando cada indivíduo se sente na sua endocultura, e no grupo, que luta por um objetivo comum, como se fosse um fenômeno grupal à procura de um novo viver, ou de um aggiornamento no sentido da vida.
A pureza dessa ficção e a sua proximidade com a conhecida realidade devêm um roteiro do que já aconteceu, porém, sempre original, não se igualando aos fatos reais. Mesmo assim, ela demonstra preferir a ficção a uma inverdade sobre qualquer coisa... Os elementos da sua ficção, tecidos pelo seu imaginário e pela sua criatividade, encontram-se na amizade, no amor, na família, no ódio disfarçado de fidelidade à facção, na luta ou na alegria das danças de funk, ou no obsessivo desejo de conquistar e de vencer, no frisson do mercado de trabalho, a disputa entre as rivais facções. Redefinam-se tais ocupações que, ao serem violentas, não se caracterizam tanto como trabalho. Quanto a isso a verdade é relativa ao que acontece nos diversos recantos do país, o que, acima, chamei de “imensa cidade”. Seus personagens e fatos irreais preservam como a escritora vê a realidade. Mesmo gozando da liberdade que, na arte literária, a poíesis lhe concede...
Enfim, percebe-se, no assunto tão real e fictício, haver uma certa criptografia de identidades, como se acontecesse um certo nível de discrição, e também de proteção ao desfecho que a escritora intencionou à obra. A ficção não é abusiva, adequa-se ao mundo real, contém todos os sinais que a literatura francesa costuma chamar de um roman à clef. Sugiro que, adaptado a um roteiro, um bom diretor faria um excelente filme. O Resgate, de Iêda Lima, enfim, significa e retrata livramento e libertação.