A vida domiciliar de um homem
Nem são ainda 4h da manhã de um feriado nacional, mas eu já acordei, e melhor: sem um propósito claro. Estou entediado, e é tão bom. Agora posso afirmar plenamente que estou plenamente improdutivo. Não posso negar o que agora me parece óbvio: que há tempo para constatar o óbvio, isto é, que duas coisas são indispensáveis na vida domiciliar de um homem: isto é, uma garrafa de vinho e um maço de velas.
O vinho para esquentar as inevitáveis noites de frio; as velas, para aluminar o caminho até o líquido amniótico. Porque é preciso não acender as luzes elétricas a altas horas, não apenas para não incomodar os vizinhos, como também, e principalmente, para não nos acordarmos. Quão chato é acordarmos a altas horas, sem propósito, ligar as luzes elétricas e ver, e enxergar, e assistir, de uma só vez, a um corpo despido domiciliar. Quão entediantes! Quão ofuscantes são as luzes elétricas, a altas horas, ao nos acordarem, subitamente, de um sonho inexistente.
Quão produtivas, ora, ora, são as luzes elétricas ao revelarem, de um só golpe, a temível escuridão do lar, mas não a intrínseca a nosotros, tarefa que recai sobre as improdutivas velas domiciliares, que, revelando aos poucos e por partes e de banda os recônditos, faz-nos enxergar, e não apenas ver, a estante de ácaros, os livros usados, o sofá de um assento só; faz-nos perceber o tédio, a escuridão invisível e, finalmente, mas não menos importante, nos ensina, mais que o caminho que nos leva ao líquido amniótico, nos ensina, a altas horas, a fazer café sem entusiasmo.
Quão interessante é fabricar café sem entusiasmo a altas horas e, principalmente, assistir a colher girar o açúcar, como se estivesse cansada de sua função, só depois sentarmos à mesa, sob luz velar, e enxergarmos as paredes, percebê-las um pouco mais brancas do que ontem. Depois, irmos ao banheiro, com a vela na mão, contar azulejos e chegar a soma 48, no total. Mas, na metade do processo, nos perguntarmos "Por que será que estou fazendo isso?"
A resposta não deve vir de imediato, nem a longo prazo, porque nos impedirá de irmos à janela, com a vela na mão, a altas horas, para enxergar árvore balançar nos braços do vento e percebermos que ela, provavelmente, igual a nosotros, vive o mesmo tédio há anos. Nem por isso deixa de ser árvore. Então, por que deixaríamos de sermos tristes? Por que deixaríamos de ser nosotros? Por que, na vida domiciliar de um homem, deve ser tédio ou dependência, e não tédio e independência?
Por que a exclusão, e não a soma?
Ainda com a improdutiva vela na mão, já não a altas horas, percebe o homem domiciliar que perguntas não são as melhores respostas; pensa em inventar uma história sobre formigas, mas o pensamento logo se desfaz; de repente, o tédio lhe parece plenamente suportável.
Já é dia, e percebe o homem domiciliar que nada de novo há no front. Apaga a vela, sai do sereno, volta à sua escuridão domiciliar. Não precisa mais que a estéril vela domiciliar lhe mostre o caminho, porém, é uma pena não poder dizer o mesmo quanto ao vinho.