A Evoluçao de Uma Tradição

Desde 1984 que participo dessa competição pelo prazer de correr. No primeiro ano que participei éramos mil corredores. Durante esses meus 40 anos de São Silvestre, falhei em algumas edições por estar viajando, mas não deixava de treinar.

Até 1989, a corrida acontecia à noite e, com as ruas mal iluminadas, muitos atletas se machucavam, torciam o pé nos buracos ou tropeçavam nas guias. O bom era a largada, saíamos trotando e, logo, cada um seguia no seu ritmo. Ainda não havia pessoas na frente querendo aparecer na televisão, impedindo os outros de correr, fazendo tchau e mandando beijinhos.

Na década de 1990, a São Silvestre mudou para o período da tarde. No início começava às treze horas, depois às dezesseis e nos últimos anos, às dezessete horas. Levou dez anos para que a organização percebesse que dezembro é verão, sol escaldante, asfalto fervente, temperatura acima dos 35 graus, muitos corredores passavam mal, desmaiando no trajeto. Túneis de água fria ajudavam a refrescar, mas o calor prevalecia, e logo estávamos secos de novo. Quando não era o calor insuportável, era a chuva torrencial, cujas gotas, ao cair, doíam no corpo. Pior era a chuva de granizo, muitos paravam de correr e aguardavam em algum abrigo pela passagem da tempestade, para depois continuar a prova.

No ano de 1996, eu estava na minha melhor forma física, mantendo um ritmo de seis minutos por quilômetro. No começo, foi complicado desviar das pessoas que desejavam aparecer na televisão. Demorou um pouco, mas depois de dois quilômetros, a rua estava livre e consegui recuperar o tempo perdido. Estava com 39 anos, bem preparado, corria mantendo o ritmo.

Ao contornar o Teatro Municipal, ultrapassei o deputado Eduardo Suplicy. No Viaduto do Chá, passei o piloto Rubens Barrichello. No início da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, vivi um momento de glória ao correr ao lado de Dadá Maravilha, jogador de futebol tricampeão da Copa de 1970. Estávamos no mesmo ritmo e o público gritava: “Olha o Dadá Maravilha!” Corredores se juntavam formando uma espécie de escolta ao seu redor. Ele sorria e cumprimentava a todos. Homens saíam dos bares tentando correr atrás para abraçar Dadá, mas não conseguiam alcançá-lo.

Lembro-me dele dizendo: “Vamos, rapaziada, o ritmo está bom, faltam poucos quilômetros para chegar.” Devido à festa na rua, nem percebi a subida da Brigadeiro. Ao entrarmos na Avenida Paulista, na reta final de 2 km, o público vibrava e aplaudia Dadá Maravilha. Faltando poucos metros para a chegada, ele disse: “Valeu, rapaziada, vocês estão bem. Bom ano a todos.” Ele seguiu para a área reservada e eu cruzei a linha de chegada dos 15 km.

A partir do ano 2000, a organização alterou a largada da corrida para as 8 horas da manhã. Todos os corredores aprovaram essa mudança. Devido à transmissão na televisão, o número de participantes dobrou a cada ano. Também aumentou o número de corredores fantasiados, que chegam cedo e passam horas parados na frente, antes da faixa de largada, para aparecer na TV. Assim que a largada é dada, o pelotão geral, que fica atrás, aguarda alguns minutos, inicia uma caminhada bem devagar, como um trem saindo da estação. Aos poucos, os passos vão se alargando, a velocidade aumentando, e só então é possível começar a correr após um quilômetro.

Há quarenta anos éramos mil corredores, em 2024 trinta e oito mil participantes. As inscrições deste ano foram abertas no mês de outubro. Quando fui fazer a minha em novembro, estava encerrada. Mas quem não consegue se inscrever, corre avulso, são apelidados de pipocas. Eu era um entre os milhares de pipocas. Enquanto aguardava a largada, no meio daquela multidão, dei uma olhada geral e vi um mar de gente, as duas pistas da avenida Paulista estavam preenchidas, pelos meus cálculos trinta e oito mil inscritos, mais de dois mil pipocas, havia quarenta mil participantes. Fiquei imaginando: no próximo ano acontecerá a 100ª São Silvestre e iremos ultrapassar os cinquenta mil corredores.

Nos últimos anos começou uma nova mania entre alguns participantes. As fotos e as selfies. No início registrava-se o momento na concentração, o corredor e os amigos. Agora durante o trajeto os corredores param, ou diminuem o ritmo, fazem uma selfie e postam. Alguns com um suporte no celular filmam a corrida e comentam. Outros, com câmera Gopro no capacete, registram toda a competição. Para quem vem atrás no seu ritmo, tem que desviar para evitar acidentes.

A São Silvestre não é apenas uma corrida de rua, mas uma verdadeira festa popular. Durante o trajeto, temos a presença animada de bandas, tambores japoneses e grupos de samba. Chova ou faça sol, a energia dos corredores é contagiante. O ponto alto é a subida da Brigadeiro. No início, todos cantam: “i i i eu vou subir”. Quando estamos quase no final, faltando dois quilômetros, uma bateria de escola de samba dita o ritmo, os corredores clamam por "cerveja". Tem à vontade e gelada. Alguns param para beber um gole, sambam, cantam com o público e voltam a correr.

No próximo ano, a São Silvestre completará 100 anos. Combinei com meu amigo Nino que não podemos faltar, pois participamos desde 1984. Nesses 40 anos, muitos amigos correram conosco, mas ficaram pelo caminho. Sobrou apenas nós dois. Em 2025, Nino completará 70 anos e me disse que será sua última prova. Não acredito que isso acontecerá, porque quando terminamos uma corrida ele sempre diz: "Essa foi a última". Passada a fadiga, planejamos a próxima, que será no dia 25 de janeiro, aniversário de 471 anos de São Paulo, a primeira corrida Cidade de São Paulo de 10 km. Um atleta como ele não para, apenas reduz o ritmo. Combinamos que estarei presente na São Silvestre dos seus 70 anos, e desejo que ele também esteja nas minhas setenta primaveras, daqui à três anos.

Durante todos esses anos, nunca assisti uma briga ou uma discussão por qualquer motivo. Pessoas de todas raças, nacionalidades, idades e sexo participam em plena harmonia, cada um com o seu objetivo e ninguém é hostilizado.

Correr a São Silvestre no último dia do ano é um momento raro. A metrópole de São Paulo está serena: nenhuma agitação urbana, escassos automóveis circulando, os apitos dos guardas estão emudecidos e as buzinas dos carros desligadas. Os sons que ouvimos são os passos dos corredores, respirações ofegantes, pessoas nas calçadas incentivando os participantes a continuarem. É nesse dia que apreciamos as ruas, avenidas, praças, edifícios e percebemos a beleza da cidade.