Golpe de vista do goleiro
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A barreira estava formada. Eram dois ou três jogadores, não me lembro ao certo agora. O jogador adversário estava a postos, pronto para cobrar a falta. Havia gritos dos dois lados: meus companheiros insistiam para que eu montasse bem a barreira e me posicionasse corretamente no lado oposto, fechando o ângulo sob a trave; do outro lado, os jogadores da Vila Paulista debochavam com risinhos soltos. Estavam confiantes e quase “pré-comemorando” o gol, pois tinham certeza de que o fariam. Estávamos no “nosso estádio”, como sempre. Era o campinho de areia do Esporte Clube Cubatão, do qual o tio dos meus primos fazia parte da diretoria e assim nos permitia usar o local todos os finais de semana. Este era mais um dos infinitos “contra” em que enfrentávamos a V.P., com a iludida esperança de vitória, que só aconteceu duas vezes em todos os “clássicos” que disputamos.
O nosso time se chamava P.Ó.S, Partido de Oposição ao Secretariado. Surgiu de um outro contexto ligado ao grupo de jovens da igreja que frequentávamos e que, talvez um dia, eu resolva escrever sobre ele. As tardes de domingo eram quase sempre preenchidas por futebol nesse campinho. Jogávamos muito contra os caras da Vila Paulista, mas, de vez em quando, variávamos, chamando os caras da rua Santos ou da paróquia São Francisco. A base do nosso time era quase sempre a mesma: eu no gol, o Clayton e o Léo, meus primos, na zaga, Alessandro, Paulo Robson e Edson completando o time e buscando os gols. Às vezes, contávamos com o reforço do Cícero e do Paulo Vitor, o que melhorava bastante a nossa equipe de qualidade duvidosa. Chegamos a ter a audácia de organizar um campeonato com vários times em que, no final, tivemos um resultado até que satisfatório, uma vez que não ficamos em último lugar.
As brigas, ao final de cada partida, eram frequentes. Deixávamos o campinho e íamos para a casa mais próxima, a do Léo e do Clayton, e lá buscávamos identificar nossos erros, os pontos fracos, as principais falhas. Isso virava um bate-boca dos grandes, com reclamações, ofensas e xingamentos que, não poucas vezes, evoluíam para empurrões, tentativas de socos e perseguições empreendidas pelo Clayton, o mais esquentado. Eu tinha o hábito de o provocar e culpá-lo por erros que nem sempre eram seus, só para vê-lo nervoso partindo pra cima de mim. Depois de muito discutir, íamos para casa nos preparar para a missa de domingo à noite, quando o nosso futebol-arte já tinha sido esquecido.
Muitas foram as cenas marcantes e os lances emblemáticos dessa época de boleiros que vivemos. O Alessandro tinha um chute forte e costumava receber a bola do goleiro e, lá do fundo do campo, gritar para quem estivesse perto da área adversária “no mu-muuu”, e tacava um chutão com cara de cruzamento. De vez em quando, dava certo, pois encontrava o Edson bem posicionado, que conseguia acertar uma cabeçada ou chute em direção ao gol. Era nosso êxtase. Mas, nem sempre o Edson era tão eficaz em suas investidas, como na vez em que tentou dividir a bola num jogo de corpo com o Diego negão, da rua Santos. Foi como se ele tivesse se lançado contra uma parede de concreto. Bateu e voltou, caindo no chão de areia, levantando uma nuvem de poeira imensa. O jogo parou imediatamente, não por qualquer preocupação que houvesse com ele, mas pelos risos e gargalhadas que todos demos. Levamos um bom tempo para retomar a partida e até hoje, vez ou outra, lembramos disso e as mesmas risadas voltam. O Léo, nos momentos de desespero em que sofríamos alguma goleada (o que era comum), pegava a bola no campo de defesa e saía em direção ao gol adversário. Cabeça baixa, olhando pro chão, cortava pra um lado, se esquivava pro outro, com dribles bem-sucedidos, aguçando nossa esperança. Chegando próximo ao gol, enchia o pé e, com uma pontaria certeira, decolava a bola a uns quinze metros de altura, batendo no paredão do ginásio que ficava atrás do campinho. Que frustração! A nossa sorte, às vezes, era quando, no contra-ataque do time rival, o Clayton, corpulento, impedia o aumento do placar, travando o jogador com um carrinho na areia, alçando o adversário num voo que seria capaz de deixa-lo perneta. A reclamação era geral e os adeptos à paz e à diplomacia tinham que entrar em cena e acalmar os ânimos.
Para além de tudo isso, o que realmente marcou o time do P.Ó.S. foram as minhas brilhantes atuações. Dizem que todo grande time começa com um grande goleiro. Vai ver que era por isso que quase sempre perdíamos. Há uma lista enorme de lances em que a minha participação fora decisiva para a nossa derrota. Bolas recuadas em que eu tentava dominar a pelota olhando pra frente e ela passava lenta e sorrateira sob meu pé esquerdo fajuto e encontrava as redes furadas; chutes fracos, no centro do gol, à meia-altura, que eu tentava encaixar e a bola batia no meu peito e ricocheteava pra dentro gol; lance um-contra-um em que o atacante do outro time me driblava como se eu fosse um menininho de seis anos, pra depois entrar no gol com bola e tudo; reposição de bola com as mãos em que eu a entregava nos pés do atacante que só tinha o trabalho de depositar a bola no canto do gol; enfim, são apenas alguns dos lances que marcaram minha vida de goleiro sofredor.
E assim foi no lance de falta que abre nosso texto. Estava tudo certo, barreira posicionada, eu fechando o ângulo, jogadores adversários marcados e o cobrador pronto para a cobrança. A distância era média, lance de pouco perigo, o que me deixava numa situação confortável e que, apesar do riso e da certeza dos caras da V. P., me fazia estar confiante. O apito imaginário autorizou a cobrança. Talvez tenha sido o Du que cobrou a falta, não lembro. Tump. Chute fraco, rasteiro, no lado direito da trave onde eu estava posicionado. Apenas olhei, crente no destino final da bola para fora, arriscando um golpe de vista que se pretendia certeiro. Meus olhos incrédulos acompanharam a maldita pelota caminhar sobre a areia e, à revelia da minha vista, ir dormir, calma e bela, no fundo do gol. Os gritos dos meus companheiros se sobrepuseram às comemorações dos vitoriosos. Fui xingado e escorraçado pelo meu time, que me condenava por eu apenas dar um golpe de vista maldito, que se tornou o algoz de mais uma de nossas derrotas. Eu deveria ter pulado e desviado a bola pra escanteio e não apenas olhar com olhar contemplativo o alcance de mais um tento do time da V.P. Que desgraça a minha! Que decepção para os meus. Goleiro frangueiro não deveria atuar no P.Ó.S., antes, deveria apenas assistir o time jogar e alcançar a glória para a qual foi criado.
Apesar de tudo, guardo boas lembranças dessa época que nos inspira saudade e nos arranca boas risadas sempre que a recordamos. Essa etapa de derrotas em meio ao divertimento talvez tenha ajudado a forjar em nós a resiliência, o companheirismo e amizade que dura até hoje, quase vinte anos depois. De golpes de vista a vida está cheia. Às vezes eles nos salvam, às vezes nos levam à derrota. Para além de tudo, resta-nos estar fortes e atentos aos golpes que a vida nos dá para que, diante deles, a confiança em nós mesmos permaneça firme, indelével e constante, muito mais do que as raras vitórias do P.Ó.S. e as minhas escassas boas defesas em tantos jogos perdidos.